segunda-feira, 20 de maio de 2013

Papel de presente





Uma linda folha de papel de presente dá vontade de presentear alguém. Parece um pouco com o que se convencionou chamar de vocação: a tendência que motiva uma pessoa a fazer o necessário para realizar seu desejo.

Houve tempo em que a palavra era entendida de modo mais radical; dizer que alguém tinha vocação pra isso ou aquilo devia ser entendido como um chamado irresistível vindo não se sabe bem de onde. Até do céu, no caso da vocação religiosa. Hoje é ponto pacífico que qualquer vocação dispensa apelos transcendentais: a coisa vem de dentro do intrincado individual das características genéticas e adquiridas.

Um chamado divino dificilmente explicaria a quantidade cada vez maior de padres, pastores e freiras que um dia se cansam da vida dedicada exclusivamente ao Senhor e à igreja de que fazem parte. A vocação deles foi um engano? E – muito pior que isso – quando padres, pastores ou freiras se deixam levar pela tentação mais hedionda e, em vez de apascentar suas ovelhinhas como se esperava que fizessem, as usam como pasto? Por que esses religiosos deixam de agir como líderes espirituais para trair a confiança de seus seguidores? Humano, demasiadamente humano.

Vocação para o magistério é outra expressão que soa meio grandiosa, diante das dificuldades da carreira – salários baixíssimos, condições precárias de trabalho, clientelas difíceis de lidar. Os próprios alunos criam obstáculos ao trabalho do professor, tanto nas escolas públicas quanto nas particulares: uns ameaçam pelo potencial agressivo dos podres poderes a que estão às vezes muito ligados; para outros, nas escolas “da Zelite”, o aluno sempre tem razão, porque sem ele não haveria recursos para manter a escola, pagar salários e obter lucro. E o professor vê seus lindos conceitos relegados a segundo ou quarto plano por conta de interesses, digamos, bem mais concretos.

Nas carreiras liberais ou artísticas, pode haver grandes compensações, talentos reconhecidos em áreas diversas, políticos realmente íntegros e dedicados ao bem comum (são raros, mas existem). Mas as frustrações são mais frequentes. Depois de todos os esforços e investimentos, se a carreira não deslancha, é preciso desistir do caminho escolhido e suportar o tédio de um trabalho que nada tem a ver com o desejo de quem sonhou muito alto ou, como é comum, ficar patinando na sombra sem o reconhecimento que se imaginava conseguir. Numa sociedade que sonha continuamente com a fama e o sucesso, pode ser deprimente.

Um dos exemplos mais gritantes de fracasso que se conhece foi Vincent Van Gogh, que viveu à custa do irmão generoso sem conseguir vender um quadro, enquanto realizava uma das obras mais grandiosas de que se tem notícia nas artes plásticas de todos os tempos. Tomara que exista vida depois da morte, para que ele veja o tamanho de seu triunfo. Não poucos nomes famosos tiveram destino semelhante ou sofreram limitações que os impediam de trabalhar: Beethoven ficou surdo; Kafka, sempre enredado em seus labirintos de desespero e depressão; nosso Aleijadinho, trabalhando mesmo com o corpo deteriorado pela hanseníase que o devorou em vida. Gente que tentou e conseguiu ir além do que se pode esperar de um ser humano, como Nietzsche, Galileu e tantos mártires de origens e naturezas diversas, provam o quanto é temerário ignorar os poderosos e ousar ir além da mentalidade de seu tempo.

Vocação não é tudo: é só o papel bonito, que dá vontade de embrulhar um presente. Mas nem sempre se encontra ou se pode comprar um presente à altura do papel. Mais importantes são a persistência, a tolerância diante dos fracassos eventuais, saúde e realismo para contornar as dificuldades e a incompreensão. Mesmo sem grandes glórias, resta o papel bonito para contemplar, renovar o sonho e proteger a auto-estima.

quinta-feira, 16 de maio de 2013

HELLO, DOLLY!




ESCREVER EXORCIZA O MEDO 



Dorothy Coutinho 


 
 siga o celular! (segundo Dorothy) 


Acreditava possível uma vida privada, sem partilhar com ninguém meu comportamento pessoal, incluindo as minhas esquisitices – afinal elas não são da conta alheia.

 Encarava como um pesadelo distante e evitável o mundo descrito por George Orwell em 1984, com e sua super tela sempre ligada para escrutinar a vida dos governados.

Nos dias atuais, essa tecnologia descrita no livro de Orwell parece cena das velhas séries de Flash Gordon. Minha aspiração a uma vida privada não passa agora – ao menos parcialmente - livre do controle do Estado e de grandes organizações. E no futuro, provavelmente muito mais. Viverei daquela lembrança nostálgica dos mais velhos.

A tecnologia acelera as mudanças, e chega sem avisar.

Muitas vezes faço tudo para ignorá-las ou até mesmo hostilizá-las, mas sei que não adianta.

 Imaginemos um vírus que afetasse todos os computadores de um país, no Brasil, por exemplo, o caos seria absoluto. Não teríamos comunicação, água, energia elétrica, bancos e comércio funcionando, hospitais, nada mesmo. O vírus resultaria muito mais eficaz que um bombardeio pesado. Programas de sabotagem eletrônica são nas suas essências importantes armas de guerra, porque não há como escapar da malha informática.

Lembro-me dos filmes policiais com a cena da saída de um suspeito em seu carro, quando o detetive dentro de um taxi dava a ordem ao motorista “siga aquele carro”. Hoje? – Bem, hoje provavelmente a ordem é “monitore esse celular”. Dependendo do caso podemos ter a nossa vida completamente espionada. Grampear telefone celular ou não é coisa do passado.

 O mais comum agora, talvez até normal, seja aceitar a perda de privacidade em troca da segurança individual. Até porque não me dão escolha e o medo é uma força muito grande, bem mais difícil de vencer que outras emoções.

Medo, por exemplo, de encontrar na internet dentre tantos sites alguns que mencionam a venda de impressoras 3D, com aplicativo que instrui o interessado a “imprimir” e reproduzir o objeto “tal”, objeto esse que se encontra dentro da casa do futuro comprador, ou seja, sem a necessidade do entregador. Esses programas já estão em funcionamento, aprimorados diariamente. Fantástico!

A Ana Maria Brega mostrou em seu programa na TV aberta um vendedor instruindo como fazer direitinho, passo a passo. Fantástico, de novo! Mas só é fantástico até a gente fuçar num outro site e descobrirmos que já existem empresas desenvolvendo programas, materiais e impressoras 3D para oferecer armas de combate. Isso é fantástico??????

Qualquer um, do bandido ao psicopata, poderá comprar e “imprimir” quantas quiser, sem numeração ou registro. Ah, dirão alguns especialistas e defensores da tecnologia: o material utilizado é um tipo de plástico, portanto não se trata de armas de verdade. Sim, sim, você “pagaria prá ver” num lance de um assalto??? Eu, não.

E a gente fica sem saber o que pensar. Dá medo. Por isso escrevo. Escrever exorciza!


quarta-feira, 15 de maio de 2013

JÉSSICA DANS LE MÊTRO




Jéssica Gonçalves Lobo



 A MENINA QUE ESCOLHEU LER



   




Longe de tudo e de todos. Tinha para si, todo silêncio e estrelas do mundo. 
Mas ainda sim, escolhia como música de fundo, as canções de Cash. 
De olhos "fechados" ao som das letras, nada mais importava. Mal sabia que tinha de voltar para escolher a sua estação... 
E apesar de preferir o inverno, não tinha medo de se molhar nas águas de verão e se divertir com as folhas que voavam em outono. 
Tudo tão fascinante por lá, que nem ao menos notava o passar do tempo enquanto vivia em suas mãos historias incríveis. 
De vez em quando, esbarrava com pessoas que tinham visões fantásticas sobre algo que ainda não notara. 

Mas, diferente de muitos, não precisava entender como as estrelas brilhavam, para admirá-las por tal efeito. Nem ao menos sabia se o vento dançava, mas dançava com ele... Dançava. Sorria. Amava. 

Às vezes sentia-se deslocada em meio a tantas pessoas depressa. E ficava inconformada quando percebia que tempo não havia para uma flor. E sofria com isso. 
Mas tentava sorrir para poder então, escolher a estação que a obrigava a fechar o livro em suas mãos.


segunda-feira, 13 de maio de 2013

Quase iguais



Não há como fugir: os dias são diferentes, mas iguais no que se sucede – manhãs tardes noites madrugadas horas batendo martelo nos segundos. Os dias são como um leilão do que você quer, mas só vai levar se perceber a música do martelo.
As cores mudam, porém, tanto as do céu como as do coração, e os tons são inacreditáveis, de uma pessoa para outra e até para a mesma. As diferenças na mesma pessoa são mais claro-escuro, ton-sur-ton, porque o fundo é meio repetitivo mesmo, fazer o quê? Cada um se faz recaindo no refazer do que mais procura evitar. E quando o sol aparece, por causa desse estado de mesmice, pode dar a sensação de que tudo está igual. Mas até o sol tem matizes e variações, é só prestar atenção para ver: o sol não mostra sempre a mesma face, e às vezes está furioso e queima com raiva, mas às vezes acaricia a pele que nem homem enamorado.
As diferenças de uma mesma pessoa se devem a que os poros deixam entrar sempre o que lhes interessa mais. Além disso, o nunca tem muitas frestas. Se digo “nunca”, na mesma hora meus poros se abrem. Daí advém toda contradição do ser humano, e também suas repetições inesgotáveis e seus melhores prazeres.
Os dias podem parecer iguais naquilo que os outros exigem da gente.
A coisa acontece assim: a gente se repete e recai e refaz o que já andou fazendo a vida toda. Quem vive a nosso lado também recai e repete. Quando alguém refaz seu refazer e ressoa em nossa alma como repetição, é a rotina. A rotina não é o que eu faço, mas o que os outros querem que eu faça, e eu faço, repetindo – não o que eu quero e repito por minha própria conta, porque é meu e é como eu sou, mas o que os outros querem que eu refaça por eles. Nisso consiste o poder de uma pessoa sobre a outra: ser capaz de ressoar sua própria repetição no outro. E quanto maior o poder, maior o número de pessoas a refazer a repetição do poderoso. O que obviamente não é justo nem salutar para ninguém.
Quem apenas ressoa o que o outro repete e o refaz sem conseguir deixar de refazer é um candidato a passa humana. Quem não se libera da gaiola da repetição do outro, é pássaro morto dentro da gaiola sem ninguém para chorar por ele. Quem não olha em volta e procura sintonia para ouvir melhor a música do outro, chama-se submisso e nem merece muito que se chore por ele.

quarta-feira, 8 de maio de 2013

CULUNÁRIA DE RISCO

CHUCHU É COISA PERIGOSA
Por Sylvie Tigel

Chuchu em brotação
 
Alô, amiga dona de casa! :)) Preciso de esclarecimentos. 

Adoro chuchu, mas nunca tinha tido um contato mais íntimo com ele como tive agora há pouco. 

Eu, cheia de boa vontade pra fazer um almocinho saudável, peguei o chuchu, lavei o chuchu, descasquei o chuchu, tirei uma coisa meio branca q tem dentro dele (eu nem sabia que tinha), cortei e coloquei na panela pra cozinhar. 

Percebi na hora de cortar q ele é um pouco estranho e melequento e q minhas mãos estavam meio estranhas e melequentas também, mas não me preocupei muito com isso. 

Lavei um monte de louça e minhas mãos continuavam com aquela gosma. 

Eu, cheia de esperanças, fui ao banheiro e lavei com o sabonete mais hidratante do universo pra ver se resolvia o problema. Nada! Ainda tem uma coisa estranha e umas casquinhas de chuchu em mim. Estou condenada a isso? Não vai sair nunca mais? Agora o chuchu está lá na panela cozinhando e confesso q estou com muito medo dele. 
 

Almoço de amanhã: lasanha congelada!

A CASA E O RIO



Nora Borges***




 

Vivi quase toda a minha vida no Poço da Panela, ao lado do belo rio Capibaribe. Nossa casa era o resultado de muitos anos de sonho de minha mãe. Ela jamais desistiu da idéia de possuir sua própria casa, apesar das grandes dificuldades que viveu. E não se surpreendeu quando por fim, um dia, meu pai chegou com um papel grande e amarelado e começou a desenhá-la. Era um bom e jovem arquiteto e havia comprado um terreno num beco sem nome e sem saí­da, no bairro de Casa Forte. O terreno estava muito próximo a um sí­tio de vegetação cerrada e árvores centenárias, por onde se podia ouvir os sinos de uma igreja pequena e branca ou os ruí­dos de um barco de madeira que fazia a travessia dos pobres para a outra margem do rio. Eram vozes abafadas, que escutávamos como se fossem de duendes e fadas. Entrávamos ali seguindo a velha Estrada Real do Poço, salpicada por casarões antigos cujos donos eram herdeiros da época em que tudo aquilo era um engenho de cana-de-açúcar. No meio da Estrada estava a antiga sede do engenho, mal assombrada e tenebrosa a qualquer hora do dia ou da noite. Do nosso lado, os pequenos caminhos, o mato. Muito mato e os braços largos do rio. Como se desenha um sonho? Não foi fácil. Do papel para as primeiras pedras dois anos se passaram. Um sonho não tem preço, mas as pedras têm. E eram muito caras para a realidade financeira da famí­lia, no iní­cio dos anos 60. Hoje sei que a vida com um sonho é sempre mais próspera. Minha mãe economizava até em palitos de fósforo, o que deixou uma marca em seu comportamento pelo resto de sua vida. Nunca jogava nada fora. Acendia um palito já usado na boca acesa do fogão e o guardava outra vez, até que não era mais possí­vel segurá-lo entre os dedos. Lavava, passava, varria, cozinhava. Usava um vestido até que se rasgasse… Mas finalmente, um dia, fomos ver a construção.Minha mãe e suas mudas de jasmins e roseiras. Meu pai e suas folhas de papel. Foi um domingo de festa para nós. Três crianças, quatro pedreiros e o grande sorriso de meus pais.Que mais era necessário? Ah, sim… uma panela grande de barro marrom e todos os ingredientes de uma feijoada. Trabalhamos todos naquele dia. Carregando areia, levantando muros, plantando, pulando de monte em monte de areia e barro. Escolhemos o lugar onde seriam plantadas as árvores que depois seriam minhas amigas por toda a vida. Abacateiros, coqueiros, jambeiros, goiabeiras. Esse foi o nosso programa por muitos domingos mais, tantos que perdi a conta. Quase quatro anos depois, a construção ainda era construção. Suas paredes já se revestiam de madeira escura, o piso de parquet negro e marfim, as flores já eram uma realidade… E faltavam só 4 meses para a grande inauguração. Passarí­amos o Natal de 65 na Casa. Meu pai comprou um piano.Assim, sem avisar… Chegou um final de tarde quase sem pisar no chão. Não era um piano negro e de cauda como o da casa de meu avô. Era pequeno e clarinho, mas era um PIANO! Comecei a estudar com uma professora que tocava na igreja da praça. Meu pai tocava todas as noites e eu bailava no terraço de cerâmica encerado, de meias soquetes para deslizar melhor. Nunca tive muito jeito para bailarina e caí­a cada vez que inventava rodar como elas. Mas era uma possí­vel-futura-pianista. Uma noite ele veio… o rio. Foi sua primeira incursão pelas ruas de Casa Forte. Invadiu quase todas as casas, manchou, molhou, enlameou tudo até a altura de meio metro. Na nossa ele foi mais cruel. Fez saltar todo o parquet do piso, entortou as tábuas de madeira do escritório… e levou o piano. Mas antes o fez bailar sobre a água… descolou cada tecla de marfim… arrepiou a madeira… enegreceu tudo. Acabou com meu sonho de artista, de famosa pianista… e eu já sabia que nunca seria uma bailarina. Meu pai chorou. E nunca mais falou do assunto. Creio que queria esquecer tamanha tragédia. Ou talvez seu silêncio dissesse que nunca a esqueceria… Ao final do ano nos mudamos para A Casa, que nunca, jamais deixou de ser uma obra em construção. Pois é. Por mais que meu pai fizesse planos e projetos de decoração e mobiliário e fosse, aos poucos, trocando pisos e portas, comprando luminárias e estofados novos, a briga entre ele e o rio foi ficando cada vez mais acirrada. E violenta. Por dez anos o Capibaribe, que lambia nosso muro nas épocas de verão e dava um toque de habitantes da selva às aventuras de criança, nas épocas de inverno ameaçava subir, inundava o jardim. E por quatro ou cinco vezes elevou-se, cada vez mais alto. Até que um dia cobriu A Casa deixando apenas o reservatório de água de fora, como um bote abandonado e fantasmagórico. A cada subida, meu pai o desafiava com novas estratégias de esconder seus tesouros : os livros e os discos. Subia-os às prateleiras mais altas da estante e até mesmo nos ocos do telhado do gabinete. Eram muitos os livros de meu pai. Uma biblioteca de teto ao chão de livros, dicionários e enciclopedias. Entre os mais amados, as obras completas de Shakespeare, Pessoa, Neruda, Bandeira, Eça de Queirós, Edgar Alan Poe. O melhor de Rubem Braga, Fernando Sabino, João Cabral, Guimarães Rosa, Machado de Assis, Rachel de Queiroz. Variava de coleções completas sobre arte em pintura e arquitetura a mitologia ou séries de fição cientí­fica e suspense policial… Era um cupim de livros, o meu pai. Os livros e a música eram suas paixões e ele costumava freqüentar livrarias e sebos semanalmente. Mas… na pressa de salvar a famí­lia de morrer afogada, eles perdiam em prioridade. Ficavam na casa, escondidos em alguma altura, onde meu pai, com esperança ainda não vencida, pensava que não seriam alcançados… Ledo engano. O rio gostava de ler… E sempre subia um pouco mais, até encontrá-los… Derretia as capas dos discos, cobria os sulcos com uma lama escorregadia. Dos livros só levava as letras… as frases… deixava o papel grudado e inchado como um cadáver… como um ato de pirraça, para a gente saber o que tinha perdido, para a gente saber que ele era maior. Ele vinha e se demorava lendo. Dias e dias… Nossa casa era a primeira atingida pelas suas ganas e a última a quem permitia voltar. Assim, quase não salvávamos nada do que ele deixava. A lama negra e gosmenta era grossa e fedorenta como petróleo e havia ficado por tempo demais. Entranhava em tudo… Então, ví­amos meu pai chorar, apanhando de pá e carro-de-mão, a papa de livros e discos que o rio, sem dó, espalhava pela casa inteira… Lavávamos os discos com água e sabão, nús de suas capas coloridas. Coleções inteiras de Bach e Beethoven, as suas óperas prediletas, os Jazz e os Blues, as Grandes Orquestras. Uma raiva impotente e uma tristeza profunda se instalavam na casa e em nossos corações. Alguns discos era possí­vel comprar outra vez, mas a maioria estava perdida para sempre. Eram selos esgotados, fora de catálogo. Ainda guardo uns livros sujos de lama seca, que o rio não lavou as frases. As poesias de Neruda, a solidão de Garcia Marquez, a pedra do reino de Ariano Suassuna… Talvez o rio já os tivesse lido das outras vezes e só lambeu as capas, não os abriu. Com um pouco de sol, deu para salvar. Na última batalha entre ele e meu pai, tivemos que viver por seis meses em um apartamento emprestado, pois foi exatamente nesta que ele descobriu o esconderijo do telhado. Derrubou o teto… e leu tudo. Só voltamos para casa no ano seguinte. E meu pai estava vencido. Não quis mais brigar… parou de sonhar. Morreu dois anos depois. Tinha 50 anos. Tentamos batizar com o seu nome o beco sem saí­da, mas ele não era suficientemente importante para lutar com outro morto: o pároco da pequena igreja branca. Alguns anos depois, construí­ram barreiras no rio e nosso antigo campo de batalha valorizou-se. Venderam lotes e lotes para novos habitantes do romântico bairro do Poço da Panela, que foi se transformando num rincão da nova elite da cidade. Casas modernas se espalharam por toda parte. E até edifí­cios, contrariando muitas leis de proteção ao meio ambiente e e manutençao do Patrimônio Histórico. O casarão mal assombrado é agora um museu, as ruas estão calçadas e diante de nosso antigo jardim há uma pequena praça triste e mal cuidada, árida e sem razão de ser. Três bancos de concreto, dois ou três arbustos que tentam sobreviver ao abandono… Não há mais cipós nem as árvores frondosas onde nos pendurávamos em nossas fantasias de reino das selvas. Enterraram as árvores até que morreram sufocadas. E a nossa casa também morreu… Não caiu, nem foi reformada. Está lá ainda, mas é só uma sombra esmaecida do que foi antes. Nem jasmins, nem roseiras… nem cheiro de mato verde… Metade do antigo jardim é cimentado. Nem cocos, nem goiabas, nem jambos, nem pitangas, nem araçás… Nem uma música no ar, nem o barulho dos sapos e grilos da beira do rio. Ele também não está mais lá, o rio… Mudaram o seu curso. E muitas casas estão construí­das onde antes eram seus braços. Também ele não tinha mais nada a perder.

Seu parceiro de briga não lhe comprava mais os livros… nem lhe fazia ouvir La Bohème às alturas, nas madrugadas enevoadas e úmidas do Poço… No beco, ainda sem saí­da, há agora um nome : o do padre da paróquia. E meu pai mudou-se, depois de morto, para a pequenina igreja branca. Lá, o rio ainda lambe as paredes de seus muros… Estão juntos de novo. E se pode sentir, mais que ouvir, entre as badaladas dos velhos sinos de bronze, suas queixas mútuas de amigos rabugentos… Antigos e eternos companheiros de lutas e sonhos.

**Soube agora, em 2011, que a casa foi derrubada e um edifício está lá, em seu lugar. Não fui ver.

***Publicado em outubro 16, 2004 por Nora Borges em Líbgua de Mariposa

domingo, 5 de maio de 2013

SENHORA DO TEMPO





RUA DA BAHIA

 Por Vera Guimarães



Rua da Bahia em confluência
com a av. Afonso Pena, no início
do século passado.
Na minha juventude, antes da proliferação de faculdades pelo interior dos estados, se quiséssemos continuar a estudar depois do ensino médio, tínhamos que ir para a Capital, no meu caso, para Belo Horizonte. Nos anos 50 e 60, buscar outra vida significava sair de casa e morar em casa de parentes, pensionatos, formar repúblicas, alugar porões. Experimentei todas as modalidades de moradia, estive em ambientes opressivos, lugares divertidos, convivi com gente maluca, conheci pessoas generosas, daquele tempo ainda guardo amizades verdadeiras.


Edifício Acaiaca
Primeiro fiz cursinho no charmoso Champagnat, especializado na preparação para Direito e humanas em geral, que na época funcionava na Timbiras, entre João Pinheiro e Alagoas. Depois fui fazer Letras, na então UMG, primeiro nos altos do Edifício Acaiaca, depois nos altos da rua Carangola. Um tanto por proximidade e conveniência, outro tanto provavelmente por aquilo a que chamam destino, acabei morando em diversos endereços nas imediações da rua da Bahia, nunca a mais de dois quarteirões de sua rive gauche ou de sua rive droite.

Cine Metrópole - Vista do Centro de
Belo Horizonte
De início, morei com uma tia, na rua Goitacases, entre Espírito Santo e Bahia. Ali seria meu primeiro contato com a metrópole, aliás, o Cine Metrópole ficava a dois passos. A idéia era que eu ficasse provisoriamente nessa casa. Casa, não. Apartamento, um equipamento residencial inédito para mim. Até ali eu não conhecia elevador, porteiro, área de serviço, escada de incêndio. A tia, linda e elegante, amenizou o choque de minha chegada à Capital.

Detalhe do Acaiaca
Morei, depois, ocupando vaga de uma menina que estava de férias, num pensionato de simpáticas freiras holandesas, alegres, trabalhadeiras, bem humoradas. De lá, lembro com especial carinho de um chá com biscoitos que elas serviam à noite, quando a conversa rolava solta, tranquila. Apesar da altíssima densidade demográfica nos quartos, e do evidente desconforto daí resultante, era um ambiente agradável e descontraído. Saí de lá com pesar.



Sobrado de estilo
vagamente art decó
Fui para a casa de um casal sem filhos, outra vaga provisória, num sobradinho de estilo vagamente art déco. Quando a dona da vaga voltou, me instalaram num pequeno cômodo no térreo, perto da cozinha, no que seria um quarto de empregada. Nunca fui tão feliz com uma acomodação como com aquele quartinho. Pela primeira - e única - vez na vida tive um quarto só meu. Não sei por que não insisti para ficar ali. Eu deveria ter insistido. Eu não sabia o que estava perdendo.



Esquina da Av. Bias Fortes com as ruas 


Goitacazes e Rio Grande do Sul. Ao fundo,






na esquina da rua Aimorés com a Av. 


Olegário Maciel, vê-se a fábrica 



Massas Alimentícias Aymoré Ltda. 

Foto de 1930. Crédito: Elias, do blog BH Nostalgia.
De lá fui para o pensionato de uma uruguaia, na esquina de Bahia com Bias Fortes. A casa era um lindo palacete branco, com as varandas em curva. Dos seus toques de requinte, lembro-me do piso de madeira, com desenhos formados pelos tacos claros e escuros, e não me esqueço das janelas do banheiro, onde me encantavam garças e nenúfares no vidro jateado. Mas a dona do pensionato era totalmente maluca. De vez em quando, a propósito de nada, ou de muito pouco, talvez por uma roupa esquecida fora de lugar, um café fora de hora, ela nos reunia e nos passava descomposturas homéricas, gritando conosco num portunhol miserável, provocando em algumas de nós incontroláveis frouxos de riso que só pioravam a situação.



Rua da Bahia, 1955
Morei em outros pensionatos, formamos repúblicas, desfizemos repúblicas. Na caderneta que ficava perto do telefone na nossa casa no interior, minha mãe riscava um endereço e escrevia outro, numa interminável sucessão de rabiscos a testemunhar minha busca pelo lugar ideal, por um lar fora de casa. Até que me casei e saí da órbita da rua da Bahia. Por pouco tempo. Logo voltei. E um dia vim-me embora.

Daqui do planalto central, onde moro desde meados da década 1990, volto os olhos para a rua da Bahia, e a vejo como imenso rio, cujas margens percorri por mais de 35 anos a procura de mim mesma. Não sei se me achei, mas com certeza aquela rua da Bahia não encontro mais.