domingo, 13 de março de 2011

SENHORA DO TEMPO. SOPROU O "MINUANO" NA RUA DAS PEDRAS

Por Rosete Carvalho

Cabo Frio (RJ)
Para cada um que aporta na minha casa, em Cabo Frio, cumpro o ritual de: compras de biquínis na Gamboa e passeio noturno em Búzios, na charmosa Rua das Pedras (ponha de lado a elegância e não tente ir lá de salto alto, pois estarás fadada a uma torção de tornozelo, portanto, use preferencialmente tênis ou havaianas).


Como Búzios funciona em um fuso horário diferente do restante dos mortais, após jantarmos no Bar do Zé, restaurante bom, mas com preço um tanto salgado, fomos caminhar e olhar as vitrines.


Eu já avisei do fuso horário, por isso as lojas fecham às 3 da manhã.


Entrei na Datelli, gostei de uma sandália, mas ela estava um pouco apertada.
Nisso chegou uma lourinha e disse bem séria para o vendedor que estava me atendendo.


_ “Chispe, guri, que eu laceio a sandália num upa”.

rua dos biquínis, na
Gamboa, em Cabo Frio

Na mesma hora me soprou o minuano e eu ouvi o Bagre Fagundes cantando:


_ “Ouve o canto gauchesco e brasileiro desta terra que eu amei desde guri”.


Incorporada num gaudério, passei a recordar.


Esta frase pertence à canção Canto Alegretense, que hoje se transformou não só no hino de Alegrete, onde nasci, como no hino de todo o Rio Grande do Sul. Os Fagundes, os compositores, sempre estiveram ao lado da minha família, os Ramos. O Aldo Fagundes, ex- deputado federal e ministro do STM, na minha casa sempre foi considerado filho político do meu pai.


_Chispe, gato, quando comerei te darei”. Chispe é a expressão que a minha avó usava para tirar a gurizada da sala e nós saíamos de fininho.

Aqui cabe uma pausa.



A sala de que eu estou falando era “a sala de visitas”. Cômodo de todas as casas do interior, onde reinava imponente “a cristaleira”. Móvel envidraçado que servia para guardar as relíquias da família: jogo de copos de cristal, baixela de prata e porcelana. Todas as peças eram periodicamente limpas, mas raramente usadas.

rua das Pedras, em Búzios

O Ruy Laurindo, meu irmão, conta que, quando o Salgado Filho fez uma visita a Alegrete, ficou hospedado lá em casa e tudo saiu do cárcere privado. A exposição sobrou também para a Ecilda, minha irmã mais velha, que no sarau noturno declamou sem um errinho sequer “O Caçador de Esmeraldas”, de Olavo Bilac. Relembro a todos que a poesia tem, nada a mais nada a menos, 46 estrofes, cada uma com seis versos.


Lacear a sandália.


Aí a recaída foi de gaúcha pilchada, ou seja, de bota, lenço e bombacha. Ë sempre bom deixar claro que nós da fronteira é que somos gaúchos mesmo, de faca na bota. Os das cidades grandes, como Porto Alegre e Pelotas, nós os chamamos de riograndenses. Isto nada mais é do que um preconceito às avessas.

Igreja do Alegrete

Lacear é uma coisa e laçar outra, mas é bom lembrar que somente com o couro laceado é que se faz ou bom laço.


A arte de fazer laços é passada de pai para filho.


Primeiro cortam-se as tiras de couro, que chamamos de tentos, quatro para cada laço. Elas são laceadas e depois trançadas. São laceadas para ficarem bem esticadas. Com isso quando o boi ou cavalo são laçados e apartados da manada não se soltam ao sacudir a cabeça.


Estes ensinamentos são passados nos galpões das fazendas e eu não os esqueci, apesar de ter saído do Alegrete aos 6 anos...


Aí entram os versos do maior pajeador do Rio Grande, Jayme Caetano Braun, meu primo, que diz:


_ Gaúcho é sempre gaúcho em qualquer parte que ande e mesmo que o mundo desande acabe ou desaparece, morre voltando a cabeça na direção do Rio Grande.

Alegrete

Após estes devaneios ninguém tem dúvida de que eu comprei a sandália.

Para finalizar: construímos, aqui em Cabo Frio, uma comunidade brasiliense muito unida. Estamos juntos na praia, em almoços e jantares.

E bota gente festeira.

No outro dia, após a ida a Búzios, fui toda saltitante para uma noitada na casa da Chó, criatura adorável e dona de um apartamento espetacular.

Estava de calça pantalona e com a sandalinha pretinha básica, vendida pela gauchinha.

Que surpresa! Na manhã seguinte a Bernadete me advertiu com todo o carinho:

_ Rosete, não ponha aquela sandália para sair, pois ela é coisa de gente velha.


Rio Ibirapuitã, em Alegrete

foto de Adaly Pinheiro

Fiquei pasma, mas pela cara de todas, se tratava da mais pura verdade.

Ao chegar em casa coloquei a sandália em cima da mesa e fiz uma análise minuciosa: cor preta, com tira cobrindo os dedos, presilha abotoando o tornozelo e de salto anabela.


Tudo isto define muito bem alguma coisa tipo “old fashion”.


Acariciei a maciez do couro e falei baixinho:


_ Ela pode ser velha, mas é de boa qualidade e amortecerá os tropeços que ainda terei na vida.

Por fim, decidi não aposentar a sandália, porque seria renegar, sabem quem?

Eu e o meu Rio Grande.


Beijos, Rosete