domingo, 24 de abril de 2011

SENHORA DO TEMPO. COMEÇOS

Por Sealvia

Imagem: Flickr/ de Maria Eugênia M. Guimarães
Adoro os começos, as origens, os inícios, o novo, tanto que digo com freqüência que gostaria de engarrafar todas as sensações boas que sinto ao iniciar, principalmente relações. Os melhores “era uma vez” da minha vida começaram com um sorriso, e me marcaram tanto quanto meus “gran finales”, que definitivamente nunca foram “felizes para sempre”.

Então eu sorrio pra vocês, puxo o balde do poço da memória e derramo um dos meus começos favoritos, que permanece, não como um quadro, mas mais como o museu em si, onde a cada visita descubro uma ala nova, uma nova obra, um novo detalhe.

Era uma manhã de primeira numa segunda, provavelmente em março, porque na minha infância as crianças tinham muito mais tempo pra brincar e as aulas só começavam depois das cinzas do carnaval terem sido bem sopradas por uma semana, pelo menos. Não era meu primeiro ano, embora o primeiro também tenha sido especial, por ser o primeiro, mas era um começo em toda a sua glória.

Voltar a acordar o corpo nas madrugadas frescas, vestir o uniforme intacto e reluzente, carregar o material novo com carinho maternal, os livros cheios e os cadernos vazios, e o carinho da mãe, que ajudava a pentear, que dava beijo estalado na bochecha e leite com toddy quentinho. Tudo tinha muito mais cor, mais brilho, gosto e graça.

Eu entrava no ônibus escolar tão cedo que assistia ao espreguiçar do sol, e de posse do meu lugar preferido, ao lado da janela de emergência (sempre precavida), ia assistindo ao lento desfile, rua a rua e porta a porta dos outros estudantes, novos e antigos colegas, alguns silenciosos, mas a maioria agitada. Como numa dança, no ônibus escolar era importante cada um procurar o par certo e eu ainda não tinha o meu.

Dentre tímidos olhares e efusivos cumprimentos os pares iam se formando e o cenário se completando aos poucos. Eis que meu par veio a ser a única menina de todas as crianças ali presentes que iria estudar na minha classe. Das apresentações à amizade unha e carne passaram-se apenas alguns minutos e íamos conversando sobre nossos gostos e desejos, sobre como seria bom se as poltronas do ônibus fossem parecidas com poltronas de avião, sobre o que queríamos ser quando crescêssemos e sobre como era legal o Guerra nas Estrelas, que nem eu nem ela tínhamos visto no cinema porque éramos muito pequenas ainda.

Falar sobre o filme foi a deixa para fazer saltar uma cara sorridente e marota por entre o vão dos bancos da frente palpitando sobre o assunto: “É, o filme é muito bom mesmo!”. Mil risadinhas borbulharam dos dois lados e eu não soube ali na hora, mas alguma coisa aconteceu comigo. Só sei que em algum lugar do mundo deve ter caído um raio, ou uma borboleta saiu do seu casulo, ou um arco-íris surgiu no céu ou tudo isso junto e tudo o mais que deve acontecer nesses momentos mágicos da vida da gente.

É uma sensação de susto que a vida dá, é como se eu estivesse ali, já achando que tava tudo bom demais quando ela vem e me mostra que tem mais, sempre tem muito mais! A gente é que se põe na velha fôrma e se acomoda, que acha que quando tem neblina a nossa volta é porque o mundo encolheu, quando na verdade ele fica é maior, porque o que nos cega é o medo de entrar na névoa do começo e descobrir que ali atrás existe outra paisagem, que pode até ser um abismo, mas também pode ser um gramado bem comprido, daqueles que convidam a gente a correr até cansar. Mas como é que a gente vai saber se não der o primeiro passo, se não sorrir de volta?

E o que veio em seguida àquela manhã já nem me importa tanto hoje, porque o começo foi bom o suficiente pra sustentar os “e foi então que de repente” e os “quando menos esperava” que apareceram depois naquela história.