Por Vera Guimarães
Fui criança nos anos 1940/1950. Naquele tempo, o interior de Minas se ligava por trilhos. Para qualquer direção que mirássemos, havia uma linha, um ramal, uma viação. Central do Brasil, Viação Férrea Centro-Oeste, Cataguases-Leopoldina, Vitória-Minas me eram familiares e por eles viajei.
Filha mais nova, eu sempre acompanhava minha mãe em viagens de visitas a parentes e amigos, a maioria delas feitas por trem. De Sete Lagoas íamos, rumo ao norte, a Wenceslau Braz, Carvalho de Almeida, Araçai, Cordisburgo, Curvelo, Corinto e Diamantina.
Em Cordisburgo, ponto de almoço, havia o Hotel Argentina, ao qual se chegava subindo, a partir da estação, o que aos meus olhos de menina era uma escada majestosa. Não me lembro de haver feito refeição ali. Devia ser caro para nosso orçamento. Levávamos nosso próprio farnel. Aliás, voltando de uma viagem a Curvelo, onde ganhamos abacates, num trecho da viagem minha mãe abriu um deles e ali mesmo o saboreamos. Nunca um abacate foi tão saboroso.
Eu teria uns 13 anos quando meu irmão mais velho foi trabalhar no Banco do Brasil em Carlos Chagas MG. Logo que ele se casou, fomos visitá-lo durante minhas férias escolares. De Sete Lagoas até lá vivemos uma odisséia, quatro dias de trechos diurnos e noturnos, paisagens inéditas, vendedores de quitutes e frutas, mulheres com pencas de crianças, gente entrando e saindo, samburás, malas, uma cabra, gente dando sinal fora da parada (e o trem obedecendo), baldeações, pelo menos três viações: Central do Brasil, Vitória-Minas, Bahia-Minas.
Já adolescente e atleta do vôlei da Escola de Comércio, fiz com o time uma viagem para Vespasiano, hoje tão perto, naquele tempo uma viagem. Morávamos na rua da linha férrea, o trem saia cedinho e eu não acordei na hora certa. O técnico veio me buscar e disparamos os dois esbaforidos pela rua que amanhecia. Foi a conta de chegarmos e o trem partir.
Com outro time de vôlei, o da Praça de Esportes, fui a Montes Claros. Saímos à noite, fizemos baldeação em Curvelo ou Corinto e só chegamos ao destino pela manhã. Sonhos, paquerinhas, flirts, músicas sussurradas, casos, anedotas, confidências, tudo cabia no espaço de uma viagem de trem.
Minha primeira ida ao Rio foi pelo Vera Cruz, também conhecido pelo poético nome de Trem de Prata, deslumbramento com a viagem e com o destino.
Atrás, a Estação Ferroviária de Belo Horizonte, hoje estação de passageiros e Museu de Artes e Ofícios |
Estão vivos na minha lembrança o ruído das engrenagens dos comboios, o desequilíbrio sutil ao andar por seus corredores, o frio na barriga ao atravessar a céu aberto a passagem de um vagão para outro, o cheiro único da maria-fumaça, a cadência tlecti-chitlequetlequeti-chi-tleque-tleque, as paisagens se sucedendo, “os dois lados da janela”, as gentes ao longo dos trilhos, a fagulha inesperada no rosto, os precários banheiros, o som plangente do apito numa curva do caminho... Era nossa rotina nos deslocarmos, por divertimento ou por necessidade, através das ferrovias. Todo mundo o fazia: jovens, velhos, pobres, doentes, ricos, urbanoides, roceiros e suas cargas, negociantes, atletas, caixeiros-viajantes...
Sempre que viajo para fora do Brasil, procuro um trem. Conto isso para dizer que por lá a ferrovia está viva, vivíssima, e serve para os mais variados deslocamentos, curtos, longos, transcontinentais, atravessa metrópoles, o deserto de Gobi, o mar do Norte, proporciona contemplação, favorece convivência durante o trajeto, igualzinho nossas antigas ferrovias.
Apesar do pouco tempo disponível, fizemos questão de “perder” um dia inteiro para ir de Budapeste a Munique por ferrovia. Pela janela, passaram paisagens de cartão postal, lavouras recém-semeadas, casal de faisões ciscando a terra, veadinhos se embrenhando na mata rala ao barulho do trem, igrejas com cúpula “cebola”, crianças ciganas, bandos de estudantes, bandos de corvos.
De Porto a Lisboa, examinando tabelas, horários e roteiros, e devido a nossa ignorância e à especial sonoridade das palavras no português de Portugal, tivemos frouxos de riso imaginando e inventando significados bizarros para nomes das estações. O que seriam Alfarelos? E uma Albufeira? O que uma Trofa? Já Celorico da Beira nos lembrou um lavrador muito simpático e prestativo. Estarreja? Pampilhosa? E os bobos se acabavam de tanto rir.
De Londres a Paris, fomos de Eurostar, por baixo do canal da Mancha. De inesperado e fascinante, a St-Pancras International Train Station de onde parte o trem. Fiquei apaixonada por sir John Betjeman, de quem até então nunca tinha ouvido falar, o poeta que lutou para que o prédio não fosse demolido. Vejam nós dois aqui:
Por aqui, no Brasil, praticamente só existem pequenos ramais turísticos, melhor que nada. Levei os filhos pequenos a Sabará pelo trem subúrbio. Fiz com eles Curitiba-Paranaguá. Passeei na maria-fumaça entre Tiradentes e São João Del-Rei, recentemente, e chorei de saudade. Quando soube que a Vale atrelou um vagão de passageiros a sua linha de carga entre Belo Horizonte e Vitória, lá fui eu nas 12 horas entre as duas cidades. Ainda não havia ar condicionado e fazia um calor absurdo ao atravessarmos a região do Vale do Aço. Com a janela aberta, poeira e fuligem entrando, ganhamos bigodes e sobrancelhas enormes e divertimento que não estava incluído na tarifa.
Pela época em que entrei na vida adulta, começou o desmonte de toda nossa rede de transporte ferroviário. E gradativamente foi-se acabando esse transporte democrático, limpo, seguro, acessível, divertido, saudável, poético. Vi suas lindas estações em estilo inglês serem demolidas, ruírem pelo abandono ou virarem centros culturais. A cada dia temos notícia de pilhagem de seus trilhos e vagões, de ocupação do leito das ferrovias por camelôs, de dormentes sendo transformados em mobiliário rústico chic, de vagões que viraram lanchonetes.
Às vezes tenho lampejos de esperança, como, por exemplo, ao ter conhecimento de que existe uma Associação Nacional de Preservação Ferroviária. Passeiem pelas fotos, pelos links, conheçam locomotivas e estações antigas, vejam as estatísticas.
Também fico feliz ao ver que na criação do Museu de Artes e Ofícios, localizado na estação ferroviária de Belo Horizonte, adotou-se o conceito de museu vivo, conciliando a exibição do magnífico acervo de objetos e da montagem de ambientes relacionados a trabalho com a revitalização e funcionamento, de verdade, do serviço de transporte de passageiros.
Infelizmente o site TREM DE DOIDO, pelo qual eu amava passear, virou uma antiguidade internética e está abandonado. Espero que vocês, como eu, se enterneçam principalmente com os gifs animados da galeria 2.
A poesia que acompanha linhas e vagões e chegadas e partidas está em algumas de nossas melhores canções: O TRENZINHO DO CAIPIRA, de Villa-Lobos; TREM DAS CORES (“As casas tão verde e rosa que vão passando ao nos ver passar, os dois lados da janela...”), de Caetano Veloso; TREM AZUL, de Lô Borges; O TREM DAS SETE, (“Ói, é o trem, não precisa passagem nem mesmo bagagem no trem...”), de Raul Seixas; NAQUELA ESTAÇÃO, (“E o meu coração, embora finja fazer mil viagens, fica batendo parado naquela estação...), cantada por Adriana Calcanhoto, de Caetano Veloso, João Donato e Ronaldo Bastos; TREM DO PANTANAL, (“Enquanto este velho trem atravessa o pantanal, só meu coração está batendo desigual...”), consagrada por Almir Satter, autoria de Simões e Roça; ENCONTROS E DESPEDIDAS, de Milton Nascimento e Fernando Brant (“A plataforma desta estação é a vida deste meu lugar..”); TREM DAS ONZE, de Adoniram Barbosa, unanimidade nacional, cantada em todas as rodas; GENTE HUMILDE, de Garoto, Vinicius e Chico (“Eu, muito bem, vindo de trem de algum lugar...”); PONTA DE AREIA (“... ponto final da Bahia-Minas, estrada natural ... caminho de ferro mandaram arrancar...”) e tantas outras.
Não gosto de nessas crônicas dar um tom de “Ah, o bom era antigamente!”, mas neste caso só posso lamentar profundamente as decisões que acabaram com nosso transporte ferroviário. Desculpem-me, amigos!