Em Bestiário, um conto de Julio Cortázar, a narrativa começa num clima que seria familiar e confortável, não fosse o estilo vivo do escritor, que não o deixa cair no previsível ou entediante. Através da perspectiva da personagem principal, a menina Isabel, a história se inicia nos olhares um pouco enigmáticos entre sua mãe e Inês, supostamente uma criada de confiança.
Isabel é convidada para as férias em casa dos Funes, no campo. A mãe e Inês relutam em consentir que ela vá, embora isso já tenha acontecido antes. A essa altura, Inês comenta que “nem é por causa do tigre”, mas porque se trata de uma casa triste. Imediatamente se acende um alerta: não é usual que uma casa de campo abrigue um tigre. Alguma coisa está portanto fora de ordem.
Além dessa figura insólita, a expectativa de Isabel quanto às férias, o primo e a viagem é toda descrita em imagens que parecem flutuar no texto, independentes umas das outras, e são como tomadas de um filme, oferecidas ao leitor sem que se perca o caráter literário do conto. Pelos olhos da menina, o não sentido se justifica e se instala.
O tigre vai ser citado em diversas passagens, de modo que ninguém – autor, moradores da casa ou leitores – se esqueça de sua existência. Enquanto o capataz não avisa onde está o tigre naquele dia, ninguém sai de seus aposentos ou circula pela casa. Não está visível; depois do aviso do capataz, o aposento ou área do jardim fica interditado por sua presença.
Esse fato por si só seria motivo de estranheza, mas através do olhar da menina de nove anos é visto com naturalidade. Assim como “a hora da penumbra”, quando, deitada para dormir, ela vê passarem as imagens do dia, as que lhe dão medo, como o formicário, um grande vidro com terra e formigas, onde ela e o primo de sua idade fazem “pesquisas” e que a assusta um pouco à noite, porque se torna uma presença estranha e pesada dentro do quarto depois das luzes apagadas. Mãos, expressões, olhares, palavras mal assimiladas e todo tipo de vestígio do dia passa pelos olhos de sua fantasia, enquanto não pega no sono.
O tigre, não. A presença do tigre, diariamente lembrada e localizada, parece ser aceita passivamente pelas crianças – e adultos – sem que aparentemente perturbe a ordem da casa. Se está na sala de jantar de cristais, e então ninguém entra naquela sala e janta-se em outra. A casa é grande o suficiente para acomodar o tigre, os moradores e seus interesses.
A verdadeira história no entanto está condicionada à figura do animal invisível, e é todo um drama com doses de violência, sexo e ciúme que permanecem protegidos pelo silêncio do olhar infantil, assim como o tigre permanece oculto. A verdadeira relação entre os personagens adultos da casa é denunciada por pequenos detalhes que, aos olhos da menina, tornam-se primeiro enigmáticos, mas são interpretados afetivamente, quando capta a existência de uma tensão oculta como o tigre.
Esse tigre oculto – pulsão de morte – é um significante perfeito, porque seu significado é ambíguo o bastante para dar o tom da história e catalisar todo o peso que poderia torná-la uma narrativa “imprópria para menores”. Ao mesmo tempo, como o clímax aponta, ele fala também de uma pulsão destrutiva capaz de ser mobilizada até em nome de um impulso amoroso.