Claudia Lopes Borio
Domingo, 11 da manhã. Toca o meu telefone, é a minha filha, a cobrar. Desliga. Ligo para ela. É sua amiga, que tem o mesmo nome. Com muito jeito, ela me diz que minha filha não queria me dizer (já gelo ao ouvir isso), mas que está bem (gelo de novo) e que está no hospital (quase desmaiando agora) e vai levar alguns pontos (suor frio sobre o lábio superior) pois caiu de bicicleta, mas não quebrou nada, foi trazida pela ambulância, está conversando, falando e não está rindo pois está bem esfolada. Ta bem, mãe é profissão perpétua, lá vou eu.
Chego no hospital carregando um livro(obrigada Humberto, parte I), um pacotinho de cookies (obrigada Humberto, parte II) e uma garrafa de água, os três amigos dela estão na sala de espera com um ar muito triste e constrangido, mas me garantem que ela está viva e não foi esmagada por um ônibus. Um amigo argentino que a acompanhava no momento do tombo é o mais triste de todos, parece tão constrangido que eu temo que ele mesmo queira se jogar das escadas para compensar sua falha. Mas não há o que fazer e eu abraço o pobrezinho, que evidentemente está passando mal e tem até uma cor meio esverdeada. A essas alturas estou composta e digna. Temos que aguardar um porteiro que abre uma porta fechada com três fechaduras, ferrolhos e chaves, que nos chamará quando uma assistente social vier dar notícias da pobre menina. Fico na sala de espera envidraçada, onde o sol bate (aparentemente quiseram fazer uma estufa e não uma sala para uso humano) e pessoas sofrem com males diversos, aguardando a famosa assistente social. Uma maçaroca de fios de cabelo e sujeira rola pelo chão, movida pelos fracos ventiladores de teto. Um ambiente pouco limpo onde eu reparo também em inquietantes pingos de sangue, já pisados por vários sapatos, que desagradável!!! Um cartaz avisa que o atendimento pelo SUS é inteiramente gratuito. Um pequeno placar na parede oferece folhetos onde Jesus é a Salvação. Que bom.
Finalmente o porteiro abre as fechaduras, a assistente social vem, me pergunta quem sou, sem no entanto vislumbrar qualquer documento, anota meu nome em uma prancheta e me faz entrar. A pobre menina está ensangüentada em uma maca, no corredor, que está limpo, reparo, com o chão brilhando e cheirando a desinfetante. Menos mal. Veste uma camiseta empapada de sangue e tem uma calça de pijama do hospital com várias manchas de sangue também. Segura um pano tipo fralda com o qual tenta conter o sangue que vaza da sobrancelha cortada. Está toda suja de terra. Meu Senhor. Segura na minha mão e começa a chorar misturando sangue com lágrimas. Eu brinco e faço conversa fiada para ela parar de chorar. Agora não adianta mais. Ela terá um fabuloso olho roxo amanhã. Está desconfortável. A assistente me pede gentilmente para deixá-la, pois vai ser costurada e radiografada. Antes dela, alguns médicos costuram um corte feio no couro cabeludo de uma moça que está mais suja e ensangüentada do que ela, sem ter ninguém a acompanhá-la Acho que ela está bem, apesar dos estragos e da sujeira, e retiro-me para a infame sala de espera.
Horas depois, o porteiro já me conhece pelo nome e me conta que a assistente, que é uma só para o hospital inteiro, saiu para almoçar e ainda não voltou. Ataco vários médicos que vêm até a porta, pedindo informações da menina atropelada, ao que eles me prometem verificar o que acontece. Ainda bem que sou advogada e sei por o pé na porta quando quero falar com juízes em sala de audiência, assim consigo usar educadamente a mesma técnica para procurar saber notícias de minha filha. Umas três horas depois, já cansada de olhar o lixo que se revolve pelo chão da salinha, começo a entender porque a porta tem tantas fechaduras e ferrolhos, pois eu mesma já estou com vontade de arrombá-la e pular no pescoço da tal assistente social. Finalmente me chamam, é a mesma assistente, gentil e simpática (perco a raiva dela na hora) que me pede para lavar as mãos, que eu lavo muito bem, e sigo por uma linha amarela desenhada no chão. Passo entre enfermarias onde há pessoas em estado muito ruim, péssimo, horrível ou apenas mal. Ouvi a história de um homem que foi atacado com um extintor de incêndio. Desgraças humanas. Procuro não olhar para não ofender a dignidade dos sofredores. Estão todos ali expostos aos olhares públicos, com os tristes cobertores de soldado que são fornecidos pelo hospital, lençóis impressos, pés de fora. Enquanto não olhamos nos seus olhos, permanecem anônimos.
A filha foi costurada, radiografada, limpa, na medida do possível, está sentada na maca e já conversou com todos que estavam ali por perto. Uma médica examina uma menininha que caiu e machucou seriamente a boca, mas está corajosamente chupando a chupeta de lado e sorri para mim. Um sujeito que tinha entrado pela mesma sala de espera com o pé quebrado está deixando a mulher desesperada quando diz que não vai operar o pé. A mulher que entrou gemendo e passando muito mal em um violento ataque de pressão alta desapareceu no interior do hospital.
A médica ainda suspeita de uma pequena fratura no osso que fica em volta do olho dela e sugere uma tomografia. Eu suspiro. O atendimento é atencioso. Excesso de precauções, penso, mas vamos lá. Ela foi costurada por uma estudante chamada Ágata. Espero que Ágata seja uma competente bordadeira. Vamos à tomografia. Ela me conta que veio na ambulância trazida de maca e que foi uma experiência estranhíssima. Eu sei o que é isso, digo a ela . Preste atenção nas luzinhas na máquina de tomografia que é uma experiência psicodélica. Ela vai e eu fico em uma salinha de espera onde há uma pia muito limpa e uma caixa para lixo especial perfurante. Olho pela janela, vejo um pátio onde vários cabos elétricos imensos se contorcem por cima de um telhado – com certeza essas instalações elétricas não são muito boas, penso distraída, enquanto vejo uma gorda ratazana que vem caminhando sobre os fios e desaparece em direção ao interior do prédio. Suspiro.
Ela sai da tomografia, não tem fratura, e me diz que as luzinhas da máquina eram incríveis. Eu sabia, digo. Ela toma uma antitetânica e finalmente saímos, de braços dados, vazando ainda um pouco de sangue pelos curativos, pela mesma portinha, deixando as pessoas da sala de espera com ar tristonho em solidariedade. Despedimo-nos do porteiro (Antonio). Estamos vivas. Atravessamos a praça, pois ela está disposta a andar e vamos ao meu carro. A água tem gosto de concha, ela me diz, devo lavar a garrafinha. Está tudo bem.