Adelaide Amorim
Hermann Hesse. Narciso e Goldmund. São Paulo: Brasiliense. S.d.
Hermann Hesse talvez pudesse ser chamado autor dos impossíveis. Especialmente em nossos dias de sentimentos considerados óbvios (vide o BBB), os textos desse autor descem a profundezas e minúcias de uma sutileza às vezes difícil de interpretar. Ler suas histórias exige um tanto de interesse pelas peculiaridades da alma humana e ao mesmo tempo algum conhecimento histórico sobre as épocas abordadas por ele. No caso desse romance, desenvolvido na Idade Média alemã, uma noção das diferenças de hábitos e crenças é ainda mais necessária.
Paradoxalmente, no entanto, descontadas essas diversidades, não é difícil perceber que ações, crenças e temperamentos não mudaram quase nada. O que mudou, e muito, foi a imposição de costumes – que ainda existe e vai existir em todas as eras da vida humana, variando apenas quanto às regiões onde se viva – e a noção de hierarquia, muito mais acentuada naquela época. As diferenças são sempre muito mais sociais do que propriamente humanas e individuais.
Os protagonistas dessa história, um monge racionalista e um discípulo de talento artístico e temperamento um tanto caótico, estão unidos por um sentimento que o próprio autor não hesita em chamar de amor. Esse amor, no entanto, do qual não estava excluída a sensualidade, em especial no que se refere ao monge, não concretizaria seu lado erótico, já que o discípulo se revelaria pela vida afora especialmente atraído pelo sexo frágil. Só no final da história esse sentimento seria revelado – embora fique implícito desde o começo – já que o monge, filosófica criatura essencialmente racional, o guardaria para si durante toda a vida e o autor apenas o deixa subentendido aos leitores.
O decorrer dos acontecimentos trata acima de tudo das façanhas eróticas, artísticas e vagabundas de Goldmund. Vagabundagem aqui tem o sentido estrito de viver percorrendo florestas e campos, pousando em cabanas, sítios e casas alheias, comendo aqui e ali, dormindo nos lugares mais inusitados, transando com que lhe agradasse, enfim, o grande traço de temperamento e personalidade do antigo discípulo do convento de Mariabronn.
Mas também é preciso levar em conta as variações de humor e disposição do rapaz, como se pode ver nesse pequeno trecho: “...continuamente, como se fosse num passe de mágica, via-se abandonado pela alegria e pela serenidade, continuamente essa presunção suja e festiva [a boa disposição da alegria de viver] caía-lhe aos pés, essa arrogância, essa importância e essa preguiçosa tranquilidade de alma arrastando-o à solidão e às cismas, às caminhadas, à contemplação do sofrimento, da morte, do desespero, de todo o agir, do olhar fixado aos precipícios.”
O que atrai mais nessa leitura, no entanto, é a descrição minuciosa de uma vida errante, as aventuras a que o jovem Goldmund se dedica e que se estendem por toda sua existência. O modo como Hesse o descreve, seus percalços, vicissitudes e alegrias, a visão de liberdade que ele expressa nessa descrição, deixam muito que pensar. Ao mesmo tempo, fica a vaga noção de que a vida é assim, impossível de prever.
Resta anotar aqui a péssima revisão do texto que me chegou às mãos, sem nome do tradutor e com duas páginas em branco no começo.