A moça foi abandonada no altar. Ela levantou no meio da sessão. Rasgou o corredor, ignorando qualquer reclamação alheia, tropeçando nos pés de quem bloqueava o seu caminho, chutando sombras. Caminhou apressada pelo longo corredor, encontrou as escadas e saiu do cinema aflita, sem ar. Abriu a bolsa, remexeu os documentos, seus pequenos objetos de grande valor, pegou o telefone e discou seu destino. Esperou por dois toques. Desligou. Respirou fundo. Arrumou o cabelo, se encaixou no vestido, quase decidida, quase sem saber. Puro exercício de vaidade ou então - se você quiser saber mais detalhes- uma mulher bonita encarando a manutenção do controle estético, já que o emocional formava uma delicada avalanche. Discou mais uma vez:
- Eu não quero! – disparou ela.
- Oi, amor.
- Eu não aceito o seu convite. Você me ouve? Me ouve, eu sei que você me ouve. Eu não quero ser sua mulher. A gente não precisa casar e montar a vida juntos. Eu fiz planos. Até que você apareceu. Você apareceu e eu me encantei, me deixei ser conduzida. Um cavalheiro, você sempre foi esse homem gentil e atencioso, eu fui derretendo os meus planos, fui me apaixonando pelos teus desejos, fui me transformando em nós.
- Você já saiu do cinema? O filme já terminou?
- Aquela mulher perfeita foi abandonada. Sabe que eu não suporto abandono? Por isso eu não posso aceitar o teu pedido.
- Você quer que eu vá até aí? Vamos conversar – náufrago, perdido do outro lado da linha.
- Não quero conversa.
- É natural que você esteja nervosa. Mas na negativa o mundo funciona precariamente. Percebe o quanto é óbvio? Você conhece a minha sensatez, sabe o quanto eu equilibro e me afasto e me aproximo.
- Não quero ouvir você filosofar agora.
- Eu sei que dividir a vida é um passo, um avanço, uma nova jornada. E que os lençóis e a cama e a geladeira e o banheiro ganham um novo alguém que você redescobre nos detalhes e que tudo isso é muito difícil, ou fácil. Depende da luta, depende da lua. Mas é que somar exige.
- Quando você me diz dessa maneira, tudo volta a ser promissor. Tudo fica lindo. Mas existe um abismo entre as tuas palavras e o mundo real.
- Somar exige coragem e disponibilidade e paciência e amor, meu bem, muito amor, que no meu dicionário já inclui respeito, carinho, dedicação, compromisso, texturas, toque, pele e cumplicidade - sendo bem superficial - e a tua vida, a tua individualidade, o teu momento de silêncio, de intimidade, de música alta e um você que eu ainda não conheço. Você ganha uma nova cor, uma nova imagem, um novo sentido.
- Um mais um.
- Matemática da professora Helena, lembra? Tinha uma vida mais uma vida e isso é conta pra cacete.
- Vamos deixar como está – quase arrependida.
- Eu quero descobrir como é. Descobrir o que nos ata, o que nos irrita, o que nos encanta, o que nos deixa no cio, o que nos mata.
- Eu saí no meio da sessão...
- Não deu tempo do drama se transformar em romance – ele sorri certeiro.
- Eu te ligo depois do filme.
Desligou insegura, com a sensação aguda de que sua vida não era uma comédia, mas havia romance. E se havia e era bom e indicava um futuro, qual a razão do monstro assustador do medo? Seria comum temer o acerto? Seria prudente dizer “não” quando o “sim” sorri elegante e cavalheiro? “Não interrompa a perfeição”, repetiu como uma oração. “Não interrompa. Pode não dar certo. Pode dar certo. Eu quero que dê.”
Pensativa, retornou à sala do cinema. Mas o filme não importava mais. Pensou no discurso que ouvira. O quão ensaiada as palavras pareciam. Ou era apenas a maneira que ele descobrira de acalmar a insegurança dela. Filosofando frases de efeito para que, de repente, algum efeito faça. Sacou o telefone da bolsa e digitou com frieza: “e se não der certo?” Poucos minutos após, ele respondeu com a mensagem: “atenda ao telefone e não diga nada, apenas ouça.”
- E quando o vento deixar de soprar, a gente fecha a casa. Chora um rio. Recita os melhores poetas. Revisita as melhores frases. Se afunda na fossa nossa de cada fim. Bebe por aí e também por aí perde a direção. Para se encontrar. Eu te disse que na negativa, o mundo funciona precariamente. Me sorria um “sim”. Quem sabe eu não aprenda um pouco do teu “não” e você ganha um pouco de equilíbrio? Não é assim que a vida corre? Entre espelhos e reflexos? Um sambinha e um tango? Menos com mais, dá menos. E eu nunca fui bom com números, cifras, contas. Dos problemas, eu não gostava de resolver. Deixe eu te dizer assim: João tinha um coração. João era um “sim”. João encontrou Maria, que carregava outro coração. Maria era um “não”. Como fazer João e Maria somarem seus corações sem colidir as intenções? É você quem eu quero hoje. Mesmo na negativa. Nunca na contra-mão.
Finalmente ela encontrou o romance. Fora da tela. Esperando o fim para poder começar.