Por Ana Laura Diniz
“A mocinha morre no final”. Leitor nenhum se sentirá
sacaneado com essa verdade. Isso porque em “A Morte sem Nome”, de Santiago
Nazarian, a morte chega sem presságio desde o início, e abre naturalmente um
leque de elucubrações.
“Não quero mesmo viver para sempre, apenas experimentar mais
uma forma de morrer”.
Quantas vezes você quis morrer? Fosse por um término de
namoro, de casamento, uma depressão, falta de emprego, um amor não vivido, um
zero recebido depois de estudar madrugada adentro, auto-piedade ou para
simplesmente provocar culpa ou perdão em alguém? Aquela louca vontade de
atingir o intangível e voltar ileso, para assim continuar a viver. Seja por
qual motivo, ao menos uma vez, você já calculou e imaginou a sua morte?
Lorena, a protagonista de Nazarian, fez mais que isso. Ela
assumiu e reassumiu esse compromisso em todos os capítulos do romance.
“A solidão é negra, profunda, sobre o branco dos meus olhos.
A paixão é vermelha, quente, correndo por dentro de mim. Entre uma e outra, há
milhares de cores mordendo a minha carne. Carrego todas, quando apagam a luz. E
quando a solidão for negra de lembranças irão colorir minha vida”.
Puro xadrez de ideias e situações. Cada frase e subtexto
podem juntar-se ou não a um vertiginoso quebra-cabeça, e recorrências e
coincidências acabam por montar o mosaico dessa mulher que vive apenas pelo
prazer de se matar.
“O mundo se divide nos bons e nos maus
E nos dez mais elegantes
Nos livros da estante
E ela dançando
À beira do abismo
E ela dançando
À beira do vulcão”
Fervilhante e fria ao mesmo tempo, seu estilo “Stromboli”,
canção de Alvin L. interpretada por Marina Lima no álbum “O Chamado”, leva
Lorena a becos psicológicos lancinantes. Num parâmetro mais arriscado, ela bem
poderia se enquadrar na “Ópera do Malandro”, de Chico Buarque, como uma Geni às
avessas - onde ela mesma não se reconhece como gente, se joga pedra, se flagela
de formas mil, e por assim fazer, torna-se por ela mesma indigna de amar, ser
amada e amável.
Geni sofria injustiças, mas sua bondade falava mais alto a
ponto de salvar a vida de toda uma cidade que a denegria. Lorena é diferente.
Entregue a própria sorte estaria a sociedade que dela dependesse “para não
virar geleia”. Não que Lorena seja má, mas seu comportamento é maldito porque é
apático para com ela, e obviamente, para com o mundo.
“Eu nasci numa noite de chuva. Nasci sobre lençóis brancos.
Derramei sangue sobre os azulejos. E meu pai nem percebeu. E morri numa manhã
de sol”.
Apatia talvez herdada por “osmose” de seu pai, já que este
troca incessantemente o nome da filha por Letícia, sendo incapaz de estabelecer
um contato mais humano: “Engoli uma moeda, para que batessem nas minhas costas.
Ninguém se importou. O valor era baixo. Esperavam que não entupisse o vaso
(...) Ele se sentia homem ao me fazer mais criança. Chorando, eu o fazia mais
pai”.
Paredes lentamente erguidas em vida de pedra. Paralisia que
reina na morte e no renascimento depois de cada capítulo. O segredo não está na
vida, mas em quem chorará sobre sua lápide.
Nessa controvérsia de sensações, subjugada a restos de vida,
de corpo e à falta de esperança, Lorena se oferece a um adolescente, um primo,
um garçom, um feirante e um estuprador. Todos a consomem como souvenir, mas sem
comovê-la.
“Deitada no celeiro. Via Jeremias se levantando, puxando as
calças, a cueca velha e manchada. E esperava que ele se virasse pra mim, me
deixasse ver um pouco mais, me dar mais algum sinal, algum motivo para eu não
me arrepender”.
Suicida serial tida como incendiária, bêbada e doida. A
menina baba branco, secreção que escorre pela boca numa overdose geral de
excesso ou falta de atitude. Linha por linha, como quem tricota um pulôver,
Lorena tece fios sanguinários em delírios poéticos.
Ao artista não se pede o porquê da arte, ao escritor não se
pede o porquê do texto. Mas sob a curiosidade dos motivos que teriam feito
Nazarian escrever a obra, veio a resposta: “Esse é o meu suicídio literário.
Muitos querem se matar só para ver como é, só para provocar os outros, por
gostar da ideia. Eu fiz tudo isso, e sobrevivi pra contar a história”, afirma o
autor. Graças a Deus. E apesar dele ousar no estilo, amarrar as passagens e
compor as personagens, o enredo rateia bastante em certos momentos, mas sem
impedir que reflexões sejam feitas acerca do tempo e espaço, da vida e morte
num âmbito pluralista.
Sem pieguice, sem culpa e sem vítima da situação. Se existe
glória, isso se faz presente nos gestos de Lorena, que não vacila: tatua o
fatídico em seu corpo e abusa da sobrevida e do renascimento para provar o
tempo inteiro que o bom da vida é mesmo a morte.