Dade Amorim
Às
vezes as coisas podem acabar bem. Experiência própria. Tinha um medo
supersticioso de confessar isso. Quebrei o tabu, desmanchei a crendice e abri o
jogo num fim de sábado em maio. Mês dos finais felizes.
Mamãe
ia comigo ao cinema. Andávamos de casa até a praça Saenz Peña, não era longe,
dez a quinze minutos a pé. O hall de entrada do cine Metro era gelado, chegava
um frio delicioso lá de dentro. Naquele tempo não fazia o frio que faz hoje no
Rio. O lugar pedia drops de hortelã, o verde, redondo, de embalagem também
verde com as pontas prateadas. Só depois apareceu o quadradinho, embrulhado um
a um.
Era
o bom começo. O cheiro de ambiente fechado se espalhava como uma surpresa pela
sala de espera. Havia tapetes vermelhos nas escadas que levavam à sala de
projeção, passadeiras presas por tubos de metal bem dourado. Era luxuosa, a
sala, art-déco meio art-nouveau, balcão de balas à direita
dos que entravam pela roleta geladinha. E lá dentro as poltronas macias, fria
escuridão que lhes escondia a cor, talvez vermelha. Não sei bem por que a
lembrança do Metro Tijuca me vem cheia de toques vermelhos, agradáveis ao tato
e com esse inseparável sabor de hortelã.
O
mais importante surgiria logo depois do jornal, colorido, irretocavelmente glamoroso,
um mundo fácil e leve, ritmado, cintilante, fantasioso, onde tudo vinha pronto
e em harmonia. E sempre, sempre dava tudo certo. A filosofia era a mesma dos
números de show. Afinação, ritmo perfeito, rostos perfeitos até na possível
feiúra. Tons e texturas, caras e bocas. Como igualar o brilho dos cabelos, o
talhe quase etéreo, o torneado das pernas, o afago das vozes – hoje eu sei –
melosas demais? Os lábios, o azul de certos olhos, os dentes? Gestos como
golpes de asas, pernas sem peso.
As
atrizes de musicais foram na certa as primeiras pernas a conseguir fama
internacional. As primeiras estrelas mundialmente famosas. Os musicais da Metro
ocuparam por muito tempo o lugar que hoje ocupa a novela das oito. Ou talvez a
novela mexicana das caras de boneca-de-porcelana, dos galãs sem jaça que não
poderiam ser outra coisa senão galãs, além, é claro, de cantarem tão bem. Ou
então apareciam Fred Astaire, Gene Kelly, aqueles caras que dançavam com a
gente.
Um
mundo assumido de fantasia e ilusão sem limites. Dourado sobre azul a
imaginação ouriçada, os olhos fartos de surpresas que iam do sublime ao kitsch com extremo prazer, como era bom.
E tudo sempre dava certo. As imitações de gente daqueles filmes sofriam,
duvidavam, mentiam, amavam e eram às vezes mais pastiches que paródias,
absurdos contos simplórios que apenas abriam espaço para as doces visões e os
números incríveis dos shows inocentes de Hollywood, dos números ainda ingênuos
até para pintar alguma forma de malícia ou erotismo.
Alienações
e críticas de pessoas tidas como doutas, quanto à intenção do que se mostrava
nos musicais: propaganda imperialista, mentira, tudo mentira, futilidade e
vanglória, alegria postiça e sem conteúdo. Leviandade, oportunidade aberta à
moral tolerante, proclamavam os religiosos de nariz torcido. Situações tênues e
irreais do roteiro, mesmo assim, ofereciam material aos reparos dos censores de
plantão, naquele tempo mais numerosos e respeitados que agora. Sempre uns
chatos, porém.
Mas
havia uma forma artificial de perfeição naqueles espetáculos que conseguia
remi-los de todas as falhas que se alegassem. Mesmo porque, ninguém que
percebesse alguma coisa poderia levar a sério neles mais que o espetáculo em
si, o show, a música, a dança e os
cenários deslumbrantes, a técnica perfeita, os figurinos e a sincronia perfeita
dos pares, os arranjos adequados ao romantismo das situações. Qualquer
carrancismo ou seriedade da trama teria feito daqueles filmes dramalhões
insuportáveis ou óperas falidas. Fazia parte da especificidade de sua forma
mimética que fossem frágeis as cenas e as circunstâncias, de uma linha de ação própria
para fazer sobressair a trilha sonora e os números de dança, e só. Apenas dava
certo, tudo tinha que dar certo, porque o segredo da eficácia da obra como um
todo era dar certo. Não era um folhetim, embora às vezes parecesse, assim de
leve. Era talvez uma forma sutil de marketing,
não agressivo como os de agora, num tempo em que a televisão apenas se tornava
conhecida de uns poucos e o cinema era a grande oportunidade de deslumbramento
das almas simples de moçoilas em flor.
Havia
uma forma superficial de perfeição, em parte graças à técnica, que dava suporte
ao vazio e ao brilho. Mas havia acima de tudo a filosofia fresca e sem dobras,
a ludicidade dos ritmos sincronizados, sapateados, estilizados; das pernas
gêmeas e sensíveis, belas ou miraculosas; dos corpos expressivos, quando ainda
não se falava em expressão corporal; das imagens clean, coloridas, certas, bem combinadas. Um conjunto de gestos
precisos, estereótipos teatrais sem culpa e até uma sensibilidade que às vezes
acertava em cheio pelo encanto da representação encenada, na música perfeita
para sustentar as sensações do momento e as saias que deviam esvoaçar
reciprocamente, complemento visual e auditivo de paz, tramando gaiatamente um
final feliz que a ninguém poderia incomodar, uma vez que o tema era sempre a
harmonia. Só insensíveis não veriam isso e não se deixariam embevecer naquelas
duas horas de impossibilidades deliciosas.
Dane-se
a impossibilidade. Tudo pode sempre dar certo. Era essencial internalizar a
mensagem tantas vezes e de tantas lindas formas repetida. Naquele tempo não
seria justo não crer no impossível.