segunda-feira, 12 de agosto de 2013

O CINE METRO


Dade Amorim





Às vezes as coisas podem acabar bem. Experiência própria. Tinha um medo supersticioso de confessar isso. Quebrei o tabu, desmanchei a crendice e abri o jogo num fim de sábado em maio. Mês dos finais felizes.
Mamãe ia comigo ao cinema. Andávamos de casa até a praça Saenz Peña, não era longe, dez a quinze minutos a pé. O hall de entrada do cine Metro era gelado, chegava um frio delicioso lá de dentro. Naquele tempo não fazia o frio que faz hoje no Rio. O lugar pedia drops de hortelã, o verde, redondo, de embalagem também verde com as pontas prateadas. Só depois apareceu o quadradinho, embrulhado um a um.
Era o bom começo. O cheiro de ambiente fechado se espalhava como uma surpresa pela sala de espera. Havia tapetes vermelhos nas escadas que levavam à sala de projeção, passadeiras presas por tubos de metal bem dourado. Era luxuosa, a sala, art-déco meio art-nouveau, balcão de balas à direita dos que entravam pela roleta geladinha. E lá dentro as poltronas macias, fria escuridão que lhes escondia a cor, talvez vermelha. Não sei bem por que a lembrança do Metro Tijuca me vem cheia de toques vermelhos, agradáveis ao tato e com esse inseparável sabor de hortelã.
O mais importante surgiria logo depois do jornal, colorido, irretocavelmente glamoroso, um mundo fácil e leve, ritmado, cintilante, fantasioso, onde tudo vinha pronto e em harmonia. E sempre, sempre dava tudo certo. A filosofia era a mesma dos números de show. Afinação, ritmo perfeito, rostos perfeitos até na possível feiúra. Tons e texturas, caras e bocas. Como igualar o brilho dos cabelos, o talhe quase etéreo, o torneado das pernas, o afago das vozes – hoje eu sei – melosas demais? Os lábios, o azul de certos olhos, os dentes? Gestos como golpes de asas, pernas sem peso.
As atrizes de musicais foram na certa as primeiras pernas a conseguir fama internacional. As primeiras estrelas mundialmente famosas. Os musicais da Metro ocuparam por muito tempo o lugar que hoje ocupa a novela das oito. Ou talvez a novela mexicana das caras de boneca-de-porcelana, dos galãs sem jaça que não poderiam ser outra coisa senão galãs, além, é claro, de cantarem tão bem. Ou então apareciam Fred Astaire, Gene Kelly, aqueles caras que dançavam com a gente.
Um mundo assumido de fantasia e ilusão sem limites. Dourado sobre azul a imaginação ouriçada, os olhos fartos de surpresas que iam do sublime ao kitsch com extremo prazer, como era bom. E tudo sempre dava certo. As imitações de gente daqueles filmes sofriam, duvidavam, mentiam, amavam e eram às vezes mais pastiches que paródias, absurdos contos simplórios que apenas abriam espaço para as doces visões e os números incríveis dos shows inocentes de Hollywood, dos números ainda ingênuos até para pintar alguma forma de malícia ou erotismo.
Alienações e críticas de pessoas tidas como doutas, quanto à intenção do que se mostrava nos musicais: propaganda imperialista, mentira, tudo mentira, futilidade e vanglória, alegria postiça e sem conteúdo. Leviandade, oportunidade aberta à moral tolerante, proclamavam os religiosos de nariz torcido. Situações tênues e irreais do roteiro, mesmo assim, ofereciam material aos reparos dos censores de plantão, naquele tempo mais numerosos e respeitados que agora. Sempre uns chatos, porém.
Mas havia uma forma artificial de perfeição naqueles espetáculos que conseguia remi-los de todas as falhas que se alegassem. Mesmo porque, ninguém que percebesse alguma coisa poderia levar a sério neles mais que o espetáculo em si, o show, a música, a dança e os cenários deslumbrantes, a técnica perfeita, os figurinos e a sincronia perfeita dos pares, os arranjos adequados ao romantismo das situações. Qualquer carrancismo ou seriedade da trama teria feito daqueles filmes dramalhões insuportáveis ou óperas falidas. Fazia parte da especificidade de sua forma mimética que fossem frágeis as cenas e as circunstâncias, de uma linha de ação própria para fazer sobressair a trilha sonora e os números de dança, e só. Apenas dava certo, tudo tinha que dar certo, porque o segredo da eficácia da obra como um todo era dar certo. Não era um folhetim, embora às vezes parecesse, assim de leve. Era talvez uma forma sutil de marketing, não agressivo como os de agora, num tempo em que a televisão apenas se tornava conhecida de uns poucos e o cinema era a grande oportunidade de deslumbramento das almas simples de moçoilas em flor.
Havia uma forma superficial de perfeição, em parte graças à técnica, que dava suporte ao vazio e ao brilho. Mas havia acima de tudo a filosofia fresca e sem dobras, a ludicidade dos ritmos sincronizados, sapateados, estilizados; das pernas gêmeas e sensíveis, belas ou miraculosas; dos corpos expressivos, quando ainda não se falava em expressão corporal; das imagens clean, coloridas, certas, bem combinadas. Um conjunto de gestos precisos, estereótipos teatrais sem culpa e até uma sensibilidade que às vezes acertava em cheio pelo encanto da representação encenada, na música perfeita para sustentar as sensações do momento e as saias que deviam esvoaçar reciprocamente, complemento visual e auditivo de paz, tramando gaiatamente um final feliz que a ninguém poderia incomodar, uma vez que o tema era sempre a harmonia. Só insensíveis não veriam isso e não se deixariam embevecer naquelas duas horas de impossibilidades deliciosas.
Dane-se a impossibilidade. Tudo pode sempre dar certo. Era essencial internalizar a mensagem tantas vezes e de tantas lindas formas repetida. Naquele tempo não seria justo não crer no impossível.