Eloísa Helena Maranhão
Para Stedile, companheiro de luta. Que sabe o que significa ser filho de Ogum e Iansã.
“A mão que toca um violão, se for preciso faz a guerra,
mata o mundo, fere a terra. A voz que canta uma canção,
se for preciso canta um hino, louva a morte...
O mesmo pé que dança um samba, se preciso vai à luta, capoeira.”
(“Viola Enluarada”; Paulo Sérgio e Marcos Valle)
Ela não passava ainda de um bebê de fraldas, tentando se equilibrar nos pezinhos trôpegos, cabelos começando a crescer, ondulando pelos ombros, muito pretos, pele morena avermelhada, o que lhe rendeu o apelido de Urucum, olhos negros de boi bravo, boi marruá indomável, fugido pros matos quando se tentou domesticá-lo, olhinhos pequenos, sempre ardendo em mil febres diferentes, sempre em busca.
Pois ela não tinha ainda dois anos, e nem mais era amamentada, pois recusava aquele leite e aquele colo que a deixavam inquieta de vontade de andar e correr pelos terreiros – e que depois passaria o resto da vida procurando, não os terreiros, território doméstico, mas leite materno e colo que a fizessem sossegar, procurando e nunca encontrando -, e num desses dias quaisquer entre o primeiro e o segundo aniversário o pai de santo jogou os búzios e declarou, cerimonioso, “é filha de Iansã, essa menina”. A mãe calou-se, desejava uma filha menos guerreira, filha de Oxum, talvez, de Iemanjá, de algum santo mais tranqüilo, mas a escolha não era dela, e a filha era o que deveria ser, Epa Hei Iansã!
Mas o ajuntó da menina era Oxóssi, senhor das florestas virgens, das matas verdes não cultivadas, e quem conhece de santos de cabeça e ajuntós pode imaginar o que será dessa cafuzinha.
Pra quem não conhece, conto eu.
Foi crescendo inquieta, explosiva, indomável, diziam os vizinhos, onde já se viu uma criança tão estourada, e tão briguenta, e tão apimentada, parece um vatapá cheio de dendê, que boca suporta?, salve Exu!, ô meu pai, deixe a menina em paz, já não basta ser filha de Iansã e Oxóssi?
Ainda pequena quantas vezes havia fugido pras matas, depois de ataques de cólera por coisas mínimas, ou aberto os currais, os chiqueiros, os galinheiros, espantando os animais domésticos de volta à selva de onde não deveriam ter sido retirados. Quem quiser comer que cace, respondia em sua lógica irrefutável quando perguntada se deixaria sua aldeia passar fome, e então se podia ouvir a gargalhada de Oxóssi balançando as folhas das árvores, e o pai de santo meneava a cabeça.
Enquanto as outras meninas miravam-se nos espelhos e teciam saias coloridas, Cafuza fabricava arcos e flechas para a caça, e mirava-se nas águas dos rios e lagoas, e era ali que conversava com Oxum e a Iara, e conseguiu o milagre de vê-las juntas, penteando-se os cabelos uma da outra, e ensinaram a menina a tecer tranças e enfeitar-se com búzios e conchas coloridas, e flores e penas, e borboletas vivas e pequenas pererecas, e era o ser mais atraente e mais estranho, aquela mocinha andando na aldeia com brincos de borboletas, colares de besouros e joaninhas, e pulseiras de pererecas ou cobras enroladas nos pulsos e tornozelos.
Quando queria desculpar-se ou agradar alguém ela trazia alguma ave caçada e depositava aos pés da pessoa, e saía feliz por ter dado o melhor de si a quem amava. Nem percebia que seu melhor de si não era compreendido nem acatado, ao menos enquanto era jovem. Depois passou a perceber isso, e ficar mais furiosa ainda quando não a aceitavam como era. Que culpa podia ter de ser o que era, e não o que desejavam de si.
Crescia também cheia de charme a cafuza, sensual, aquele rebolado deixava os homens loucos, os negros, os índios, os cafuzos, até os brancos que por ali passavam para negociar em lombo de burros, primeiro, depois nos trens, enlouqueciam de desejo pela cafuza, imaginavam que domá-la na cama seria o que de melhor podia haver na vida.
Homens. Sem comentários. Todos sabemos como são os homens. Mas ninguém sabe quem são realmente as mulheres.
Principalmente uma mulher cafuza, filha de Iansã e Oxóssi, que não nascera para ser domada, para viver domesticada, para seguir os caminhos dos homens que a queriam para si, sim, quem resistia a tanto furor e tanta vida, mas a queriam submissa, seguindo os caminhos que eles escolhessem.
Cafuza nunca aceitaria isso. Nunca, vírgula, depois que se conheceu, e, já na metade da vida, aprendeu que não valia a pena deixar o próprio caminho para seguir o de outro.
Até chegar nesse ponto ela seguiu, seguiu por amor, seguiu por carência, seguiu por necessidade de colo e leite materno, seguiu por medo de andar no caminho que era dela, seguiu por tantos motivos que quando se encarou de frente, depois de mais um casamento fracassado, dos tantos casos de amor que tivera, quando se encarou ficou estupefata de ter cedido tanto e por tão pouco. Estupefata de ter vivido buscando no sexo o carinho que não lhe tinham, a ternura que desejava, mas espantava com seus acessos de fúria e sua sinceridade atroz. Quando ventava não sobrava pedra sobre pedra, palha que havia sido tão bem colocada nos telhados, paredes de taipa e pau-a-pique, árvores fixadas em suas raízes.
Essa consciência surgiu num de seus acessos de paixão, que a deixaram de quatro, arriada, e quando percebeu, tudo com que aquele novo amor lhe acenava eram os mesmos caminhos alheios – os dele, agora -, alguns carinhos esparsos – quando ele tivesse tempo ou vontade-, companhia quando ela estivesse tranqüila para ser o pouso que ele desejava dela.
Mas ela nunca estava tranqüila. Não servia de pouso, pois era o próprio vento agitado que empurrava e fazia soçobrar as naus, era os furacões, e dentro de si trazia tufões e ventanias carregadas de nuvens escuras, prontas a tragar incautos. Mas não adiantava avisar. Homens são assim, detestam avisos, não prestam atenção ao perigo, para depois se queixarem das injustiças da vida.
Os intrépidos, que tiveram ousadia de se aproximar e conviver com ela, logo se cansavam, exaustos, das iras, das tempestades sem motivos – pelo menos motivos que eles pudessem detectar -, das gargalhadas fora de hora, e dos choros convulsos, muitas vezes depois do sexo, e nunca sabiam o que fazer com uma mulher daquela intensidade, já que não haviam conseguido o intento de domá-la.
Ela também se cansava de ceder, de fingir – mesmo que com a melhor das intenções, e a melhor das motivações era amar tanto e querer estar junto do amado -, cansava de estar sempre tentando ser quem não era, sempre tentando controlar suas paixões e manter-se estável, centrada, quando nunca tivera centro – tão excêntrica -, ou talvez tivesse muitos, vários, constantemente oscilando entre seus múltiplos centros. Dançava rodopiando, não sabia passos de valsa.
O único homem que a compreendera, e compreendera tanto que decidiu dançar sozinho o resto da vida depois de dançar com ela, entendera que ela não havia nascido para seguir ninguém, e que não teria dono, nunca. Se conheceram num forró, um arrasta-pé banhado a Luiz Gonzaga, ele no canto, solitário, encolhido, marcado de bexigas no rosto e no corpo todo, envergonhado, ela espiando, até que o tirou para dançar... Tu que andas pelo mundo, sabiá, tu que tanto já voou, tu que cantas passarinho, alivia a minha dor... tem pena d’eu, diz por favor, tu que choras passarinho, onde anda meu amor...
No rodopio e no hálito da cafuza o moreno embelezou-se, sentiu-se alto, pele limpa, bonito até, feliz naquela noite. Nunca mais quis dançar com mulher nenhuma, e deixou a cafuza para que seguisse o próprio caminho. Ele foi o único que soube amá-la como ela era. Por isso mesmo deixou-a livre, não a obrigou a seguir com ele pelos caminhos que, sabia, não eram os dela.
Ela continuou sua sina.
Conforme o tempo ia passando, Cafuza tornava-se mais mansa, menos estouvada, mas cheia das marcas das danças e das ventanias que provocava. Também nela ficavam marcas, não só nos outros que a acusavam de lanhar seus corpos e almas com sua guerra. Toda guerra fere dos dois lados da batalha, ela foi aprendendo, e ninguém briga sozinho. Muitas vezes o réu era a verdadeira vítima, e agiu como reação ao que sofreu. Outras, não. Nada se pode generalizar.
Era cada vez menos vista na aldeia, e mais nas matas. Continuava caçando solitariamente, principalmente nas noites banhadas de luar, e um branco doutor que a viu caçando voltou para sua Alemanha, depois da expedição, com aquela Diana cafuza nas retinas, abandonou seu cristianismo de fachada e passou a estudar o sincretismo, até entender o que Diana dos Efésios fazia ali nas selvas da América do Sul, travestida de índia e negra. Não sei se entendeu.
De tanto caçar e perambular mata adentro, acabou por encontrar-se com Oçãnhe, que apiedou-se dela, depois de meses de rabos de olhos mútuos um no outro, e oferendas de todo tipo de caça que ela lhe trazia, mas apiedou-se mais quando a viu estendida sobre o húmus, chorando por tudo que fizera intempestivamente na vida, e por todos os caminhos que não deram certo, e por todas as marcas que deixara em todos com quem havia se encontrado, ali abandonada e cheia de culpas. Então ensinou-a a usar ervas e preparar bebidas e cantar cantos que a consolavam e aliviavam sua solidão. Deu-lhe um pequeno atabaque que ela passou a usar amarrado à cintura, e tocar quando já não suportava mais o silêncio a que havia se submetido por opção própria. E por falta de opção, também.
“Quem vem lá?” Aquela voz não lhe era estranha. Já a tinha ouvido nos sonhos, e muitas vezes dentro dos cômodos onde os moribundos jaziam, confortados pela comunidade, até atravessarem o umbral. Era rouca, a voz, magoada, ressentida e envelhecida de milhares de séculos, uma voz que saíra do começo dos tempos. Cafuza tremeu, mas não se entregou. Nunca havia se entregado, não o faria agora.
“Tire essas flechas com pontas de metal”, a velha disse, e Cafuza obedeceu. Compreendeu, também. Aquele pântano onde havia entrado eram as terras de Nanã Buruke, e nem Iansã se atreveria a enfrentá-la. Não agora, quando estava velha demais para lutar. As duas se olharam, avó e neta, avó e avó, e já não sabiam quem era uma e quem era outra. Cafuza, num último ato impulsivo, lançou-se nos braços de Nanã. Afundou na terra fofa enlameada. Havia, enfim, chegado ao porto. Encontrado o repouso.