Claudia Lopes Borio
(trecho de um livro inédito)
Vamos, vamos subir no farol? – chamou Cássio.
Como
sempre, no final da tarde, era horário para alguma excursão, alguma
aventura, quando não estava dando onda na frente da casa e os rapazes
seguiam para mais uma sessão de surfe. Todos se arrumaram, pegaram
chapéus, passaram óleo bronzeador, e seguiram rumo à ponta.
O
farol era tão natural como se fizesse parte da própria ilha, tão
proporcional, em tamanho, em brancura, e em leveza, como se tivesse
nascido ali sobre aquele morro, e não tivesse sido trazido de navio lá
da Inglaterra. Inteiramente de ferro, era uma surpresa tocar nas suas
paredes imensas e maciças e sentir a sua solidez áspera, grossa e
quente.
Francisco, George, Zezinho, Cássio e seu irmão tinham
subido os dois morros junto com ela. Francisco fora de bermudas e
chinelo, desprezando o aviso que ela fizera, de que poderia haver
cascavéis entre o mato que crescia naquelas elevações crestadas pelo
sol, com pedras quentes que irradiavam um cheiro metálico de ferro de
passar roupa ligado.
Ela colocara a calça comprida e o tênis, por
precaução. Na subida, chegara a ouvir o guizo da cascavel, quando
passaram do primeiro morro para o segundo – mas seria apenas a sua
imaginação? Ou o capim de folhas duras e cortantes balançando com o
vento?
A subida começava tranqüila, o primeiro morro até que era
baixo, e era unido ao segundo por uma estreita língua de terra.
Passavam, meio temerosos, por uma trilha estreita, margeada de altos
capins, escalando algumas pedras que eram escorregadias pois tinham uma
fina camada de sal por cima, e os pés deslizavam. Ela procurava manter a
galhardia e subia, sem se queixar. O segundo morro era bem mais íngreme
e a subida se tornava difícil, os pés escorregando com a areia e os
capins que cortavam a pele.
Quando chegaram lá em cima, um tanto
quanto sem fôlego, a porta do farol estava escancarada e alguns
operários lutavam com dificuldade para carregar a porta antiga, que
tinham retirado. Eles tinham tido a sorte de ir até lá justamente em um
dia em que os operários contratados pela Marinha estavam trocando a
gigantesca porta maciça, que já estava bastante apodrecida. Havia uma
porta nova em folha encostada ao lado, e algumas latas de tinta azul
marinho preparada para pintá-la. Os meninos se sumiram na direção
oposta, como se fossem descer o morro diretamente em direção ao mar, ela
suspeitava que tinham ido fumar maconha olhando a paisagem. De fato a
vista era magnífica, via-se o mar em todas as direções, estavam em uma
ponta avançada na direção do oceano aberto.
Francisco adiantou-se:
- Boa tarde, como vão vocês? – perguntou aos operários suados, que trabalhavam em meio a ferramentas e cabos.
Eles cumprimentaram, meio desconfiados, e pararam para fumar um cigarro. Então Francisco perguntou:
- Podemos subir?
Um operário olhou para o outro e o mais velho falou:
- Podem, mas desçam em seguida e não mexam em nada.
Ela
se sentiu excitada como criança com um brinquedo novo, pois nunca
pensara que seria possível subir no farol. Francisco e ela entraram. O
farol era imenso por dentro, um verdadeiro salão empoeirado e meio
vazio, com uns vinte metros de diâmetro, acumulando algumas caixas
velhas e engrenagens. O ar ali tinha cheiro de coisa velha e pó parado,
mas ao mesmo tempo era fresco. Diretamente na parede começava uma escada
circular de ferro, muito sólida, que percorria o farol por dentro até
em cima, dando talvez uma volta e meia, até desembocar no compartimento
superior. A meio caminho havia uma janelinha, e mais para cima outra.
Ela sentiu medo, então. Era muito alto.
-Vamos mesmo? – perguntou a Francisco.
- Vamos, Browns!
Ela foi atrás. Se ele conseguia, ela tinha que conseguir também.
Subiram,
então, até o topo, os pés batendo nos degraus de metal, e bem no alto
emergiam ao ar livre por uma espécie de escotilha, e ela não teve
coragem de se desprender da parede, pois havia uma estreita varandinha e
a terra estava muito, muito longe lá em baixo. Francisco saiu e ficou
de pé, sem segurar em nada, com magnífica coragem, mas ela sentia um
começo de pânico no suor frio que se acumulava na nuca. Não conseguia
nem sequer terminar de subir os dois ou três últimos degraus da escada e
ficou colada à parede. Era como se voassem na ponta de um foguete, sem
proteção nenhuma. O céu parecia passar velozmente por eles, mas na
verdade eram as nuvens, empurradas pelo vento. Ela espantou uma sensação
de vertigem e se concentrou nos detalhes à mão. Devia ter feito cara de
apavorada, pois Francisco lhe estendeu a mão.
- Sobe.
- Não consigo! (alarme total, pânico em todos os sistemas)
- Respire. – disse ele. (respirar)
Segurou-se na mão dele e subiu.
O
suor esfriava sobre o seu lábio e ela lambeu-o - salgado. Saiu na
varandinha aberta. Pernas bambas. O vento fustigava o seu rosto com
muita força. Ela se virou na direção de onde soprava, para que os
cabelos não batessem em seus olhos. Encostou as mãos na parede, atrás
das costas. O ferro, aquecido. O cheiro metálico.
O farol era um
olho de vidro às suas costas, com uma lâmpada gigante amplificada por
várias lentes especiais. O mais engraçado é que era uma lâmpada tão
comum quanto qualquer uma que se usava em casa em um abajur, só que de
tamanho gigante. O abismo atraía e ela poderia sair voando se não se
grudasse à parede (voar, pular). Era belo e aterrador ao mesmo tempo. Respirou, inebriando-se da beleza daquele céu, daquele momento (flutuar, cair).
A
descida, naturalmente, era muito pior, e ela deixou Francisco ir na sua
frente, enquanto ela olhava apenas para os seus pés calçados de
sandálias e as suas canelas compridas, e sentia os joelhos doerem
suavemente quando se dobravam suportando o peso de seu corpo com
obediência ao ritmo de um versinho inventado, “farol, faroleiro, lume, lumiar”.
E os pés batiam nos degraus metálicos, e a mão percorria a parede,
raspando aquela aspereza boa e circular, o interior de um caracol,
enquanto a outra mão tocava, com as pontas dos dedos, nas costas de
Francisco, amparando-se como se pudesse cair.
Uma vez lá em baixo,
ela pôde respirar novamente e enxergou a paisagem magnífica em toda
volta, onde o vento era uma presença sólida contra o seu rosto, pois
logo ali à frente estava o imenso e ilimitado oceano Atlântico, onde
nascia o sol, de onde vinham as nuvens e de cujo horizonte surgiam os
navios cargueiros que iluminavam a noite e apitavam um dó profundo ao
passar, sem que se soubesses jamais de onde eram, qual o seu nome, quem
os pilotava e o que transportavam em seu cavernoso interior.
Chegaram
à praia e ela ainda sentia as pernas moles, foi correndo até o mar e
tirou a roupa, com calor, e mergulhou, para limpar a pele do sal, do
sol, do medo que sentira.
Muitos anos mais tarde ela pensaria,
como tantas outras recordações, se teria de fato subido no farol, ou se
isso teria sido apenas uma recordação inventada, mas o fato é que ela se
lembrava nitidamente da porta sendo trocada, a escada circular, o salão
empoeirado, o grande olho de vidro e o barulho do guizo da cascavel,
que ela não teve coragem de contar para ninguém, pois este sim, poderia
ter sido a sua imaginação.