Por Ana Laura Diniz
Ricardo Augusto dos Anjos morava lá na Ponta D’areia, em Niterói-RJ, na década de 60. Lugar bonito onde tinha o solar da condessa Pereira Carneiro, dona do Jornal do Brasil. Isso no tempo em que o Jornal do Brasil ainda era um jornal. Mudou, casou, descasou, casou, mudou, e mudou novamente. Angústias de poeta. Sina de buscar cais.
Apresentado a mim via MSN pela jornalista, poeta e parceira Esther Lúcio Bittencourt há quase seis anos, o encontro real ainda é promessa. Embora verdadeiro seja o sentimento de amizade e admiração que sinta por ele. Muitas conversas a perder horas, a emendar dias. Silêncio mútuo em algumas temporadas. Em Teresópolis, onde mora, o poeta se renova a cada “oi”, indagação, suspiro.
Puro deleite. Honradíssima, caros leitores, o poeta.
Primeira Fonte (Pêéfe) – Como define a poesia?
Pêéfe – Quais os seus escritores e poetas prediletos? Que qualidades eles têm que despertam o teu interesse?
Pêéfe – Quais foram as suas influências?
Pêéfe – Se comparasse a produção poética das décadas de 60 e 70 com a atual, o que diria sobre poesia e o fazer poesia?
Pêéfe – Qual o papel que a poesia teve nesse passado pouco distante e qual o papel que exerce atualmente? Existe algum poeta ou produção poética que mereça destaque nos dias de hoje? De quem ou qual?
Pêéfe – Poesia é algo necessariamente atrelado à emoção ou pode ser estritamente racional? É possível "poetar" sem se sensibilizar? Qual é a "liga" de uma poesia?
Algo atrelado (aliás, poesia é algo) mais aos sentimentos que geram emoção. O racional vem depois, na "construção" das palavras com sua carga de emoção. Isso é a “liga”.
Pêéfe – Como se dá o seu processo de criação? Você tem alguma rotina? Como é a construção, a palavra, o verbo?
Pêéfe – Você acredita em novas formas de se fazer poesia ou acha que já foi tudo feito?
Pêéfe – Você se preocupa com o caráter efêmero ou perene do seu trabalho?
Pêéfe – O fato de ser neto do poeta Augusto dos Anjos, famoso pela originalidade temática e vocabular, já o ajudou ou atrapalhou em algum momento? Por quê? Poderia de alguma forma avaliar a obra do seu avô?
Sobre a relação da poesia dele com a minha, o olhar é de Nelly Novaes Coelho, mestre em literatura, e editora de meu livro Agrolírica (1974): “Ricardo dos Anjos situa-se em pólo oposto ao da tragicidade letal que singularizou o pensamento de seu avô. Energia vital, solaridade, lucidez ante a dramática/luminosa condição humana e a nova linguagem que deve expressá-la: é o que define esta Agrolírica, que nos coloca diante dos fenômenos mais típicos da poesia atual: o rigor construtivista da palavra fundido com um erotismo radical e telúrico, evidenciado na identificação Mulher/Terra, verdadeira ponte vivencial entre o Homem e seu Encontro com uma nova práxis e uma nova consciência ontológica”.
Agora, quanto a Augusto dos Anjos, sua única obra – EU –, plena de expressivos e impactantes poemas, dá a medida exata e antecipada (desde a sua época, e hoje confirmada) da modernidade, da vanguarda, ou pré-vanguarda do autor.
Como assinalo em minhas palestras, Augusto é poeta de e para todas as gerações ou exagerações ou degenerações, sobretudo em tempo de crises. Crises pessoais e coletivas, sociais – via opressão econômica e/ou brutalidade física. E também crises espirituais, que estão sempre acopladas, interligadas às demais crises, ou surgem destas.
O que mais impressiona é a sua contextualidade através dos tempos. Nesse sentido, o EU sempre foi e ainda é bem atual, ou melhor, contextual, exprimindo e espremendo, por exemplo, a amarga realidade brasileira. Um grito de revolta contra as injustiças, sejam elas individuais ou sociais ou até tecnológicas; contra a opressão exercida sobre os excluídos. Enfim, Augusto dos Anjos e sua poesia é crítica e autocrítica do homem violento e violentado. Poeta das gerações em revolta, da margem, do homem doente de si mesmo, poeta da morte. Daí a sua popularidade, mediante a identificação com todos os EUS, todos os EGOS, apesar da linguagem que emprega, tida como “difícil”, hermética.
Aliás, a linguagem cientificista e erudita, mixada à linguagem mais acessível, mais prosaica do cotidiano, é outro aspecto que mostra ainda Augusto dos Anjos crítico social, preocupado e revoltado com a devastação ecológica e das comunidades indígenas, as exacerbações morais, a corrupção, a prostituição, além de cantar a decomposição do ser, e o amor sem amor que a humanidade inspira.
Pêéfe – Que dica você daria para essa juventude que sonha em ser escritor, poeta?
***
Antecâmara do Espanto
1.
Não sei o que primeiro
-- pranto ou espanto –
estalou na alma
como um ovo oco
Só sei que habitamos
um teto de aranhas
a tecer negras nuvens
em torno do sonho
O verso nos sustém
a forma e o susto
porém nos liquefaz
se continuamos surdos
Não é bem o espanto
que nos causa medo
e sim o próprio pranto
no travesseiro
Pior, antes do pranto,
o gesto da direita
apalpando a ausência
da companheira
2.
O passado é um olho podre
que permanece atento
3.
Se estamos, é porque existe espelho
e nós, hirsutos, frente a frente a ele
curtindo o que de nós ao rosto aflora
com a mão na madrepérola da navalha
aguardando a hora e o grito antecipado
para sangrar bem o túnel dos olhos
e fazer do sangue espesso rio vivo
distribuindo o espanto pelos fios