quinta-feira, 21 de abril de 2011

CORRESPONDÊNCIA URBANA

ENTREVISTA COM ADELAIDE AMORIM, A 

                       ANFITRIÃ DO OUTRO



Perguntas, perguntas, perguntas. Foi assim que iniciei esta correspondência com Adelaide Amorim, a Dade. A memória é uma maneira de narrar e de ficcionar? Isto não estaria fora do racional? Onde começa o delírio e acaba a vida? Já existe acompanhamento de pacientes no virtual? E a depressão estaria associada à violência? Mas o que torna singular sua escrita, Adelaide?

Adelaide Amorim é escritora. Formada em filosofia, com mestrado em literatura brasileira. Publicou O Umbigo do Sonho pela Editora Litteris e tem um blog com o mesmo nome. Lançou Como se Livrar de Glória? Estranha maneira de nos convocar a pensar sobre nossos anseios da outra glória, que muitas vezes implica em fama e fortuna, e ver o tamanho delas, é fazer a pergunta através do título de um livro. Dessa vez um romance. Pois ao fim e ao cabo nossos anseios cabem numa imensa biblioteca da história da humanidade

Conversa leve, nem conversa é. Parece poesia que afaga a tarde. Foi numa tarde de sol. Ainda inverno e o tempo seco de poeira aqui em Caxambu. A nos separar havia um papel de parede que era uma amarílis vermelha que fotografei na primavera passada. E, de repente, o pólen caído sobre as pétalas de veludo da flor retiveram o rosto de Adelaide para mim. Sim, seu rosto é como a pétala da amarílis, os pistilos, o pólen...  Adelaide é uma flor. Depois recebi a foto dela. E continuou flor.

Adelaide Amorim mora no Rio.  Diz que os anos que tem são muitos. Tem cinco filhos, hoje todo mundo criado, uma leva de netos e dois livros publicados.









Dade – Mas a escrita de todo mundo não é singular? Assim como cada pessoa é uma só?


Esther – Não sei. Harold Bloom tem um livro que fala sobre A angústia da influência e o começo de nossa escrita sempre denuncia influências até que nossas braçadas acreditem abrir novos caminhos...

Dade – Bom, se houve influência, e é claro que houve, foi acima de tudo de Clarice, meu tema de monografia de mestrado. Mas houve Jorge de Lima, que sempre amei, Rilke e outros nomes. Claro que não cheguei a ser como nenhum deles. Mas foram queridinhos meus e ainda são.

A gente é um feixe de influências e nem só de outros escritores. Mas não fica muito claro pra mim quem seria mais importante. Lembrei do Proust, que me balançou durante uns anos, mas não sei se ficou muito dele. Olha, a gente vai lendo e pegando alguma coisa, no sentido mesmo de aprender, de assimilar. Há um cara chamado Heinrich Böll, um alemão, que me impressionou muito. Há Guimarães Rosa, García Marquez, o Saramago, em especial o de Todos os nomes, Cristóvão Tezza, que estou amando. Além do Sérgio Sant'Anna, do Luiz Ruffato, de Neil Gaiman, que devia invocar toda vez que começo a escrever. Mas ainda não consegui aproveitar tudo que devia desses escritores. Há também Virginia Woolf. Não, a vida não perdeu sentido nenhum, acho que agora até começo a ter tempo de perceber o relativo sentido dela.

Mas o poeta é um fingidor, você sabe. E além do exemplo do(s) autor(es) dessa frase, existe tanta gente – Ferreira Gullar, Jorge de Lima, Carlito Azevedo, William Carlos Williams. Há os europeus orientais, como Zbigniew Herbert e outros nomes assim de entortar a língua, mas de poemas eletrizantes.

A infância é um tempo de coisas maravilhosas e de coisas terríveis. Tive das duas. Mas o balanço foi ótimo, porque me ajudou a "decifrar" algumas pessoas, a desenvolver defesas também. Sou uma tímida furiosa, e me recuso a ficar uma velhinha conformada. É difícil lembrar a idade, mas o espelho insiste em ficar dando conselhos sensatos. Ainda bem que ninguém segura os pensamentos e os sentimentos. Mas com as ações e as palavras, é preciso ter cuidado.

Esther – Você disse algo que dá o sentido da vida, aliás nos define: as palavras. Este afã em fazer das palavras nosso instrumento de comunicação.

Dade – É o que nos resta. As utopias se esvaziaram, então é preciso que a gente aproveite a matéria delas com outras finalidades que não a de se embalar. Fica Dom Quixote pra gente gostar e admirar. Todo mundo tem seu Quixote. Agora é preciso fazer outras artes e as palavras são materiais multiuso. Mas ficção é sempre um terreno inseguro.
O lado visual é muito importante pra mim. Além disso as coisas que convivem com a gente vão ficando familiares, fazem parte da vida. Acho que é isso. E há as que a gente ama e as que a gente não quer mais. Os sentimentos marcam as coisas e os lugares e os definem.

Esther – Qual a repercussão deste seu segundo livro e como foi a do primeiro?

Dade – Nenhum dos dois é best-seller, mas venderam um tantinho. O Umbigo está mais viajado, foi parar na Alemanha, com o Vítor Rodrigues, do antigo Botequim Poético. No Brasil, estão no Paraná, em Porto Alegre, São Paulo, Mariana, Recife, Macapá, Goiás, Brasília e aqui no Rio.

Se a gente pensar no tamanho do país e na quantidade de gente que lança livros e escreve na mídia, por exemplo, não é nada. Continuo praticamente anônima. Mas preciso lançar esses livros para não ficar engavetada.

O nome do blog veio do nome do livro. São contos, cada um com um ponto meio obscuro, meio canhestro. Sabe como é difícil entrar no mercado de livros, aí achei o título chamativo. Além de ter a ver com o Freud.

O que está na memória fatalmente vai parar nas narrativas que a gente desenvolve. Mas pode ou não servir a uma linha racional, depende do uso que se faça dela e dos dados que traz. O que a gente inventa em ficção não tem mesmo um compromisso muito firme com a razão, mas em geral segue uma linha de verossimilhança. Os contos do Umbigo às vezes saem bem dessa linha.

Se você está falando de vida real, vai pro segundo plano quando a gente senta pra escrever. Mas delírio propriamente pode até não pintar. Ou pode, dependendo do momento
Quis chamar a atenção para o que havia de não-lógico nas histórias. Freud fala exatamente em umbigo do sonho como aquilo que ninguém explica durante um sonho. Ele foi o primeiro a se preocupar com isso como estudioso, deu um tom acadêmico, enxertou na teoria dele.
Alguns blogs são bem positivos para despertar o desejo de leitura de boa qualidade. Acho que os blogs poderiam por exemplo ser mais usados como material didático que não fosse chato. Acho que o Primeira Fonte faz um pouco isso. Não um didatismo ao pé-da-letra, mas alguma coisa que já existe em blogs muito informativos como Inagaki e Ilderber e uns tantos mais, entre eles os de Janaína Amado. Há grandes poetas na rede, como Lalo Arias, Nydia Bonetti, Marcantonio Costa, Nilson Galvão, a Mai e outros que vale a pena ler, levando em conta que motivar já é parte do processo de aprendizado. Isso é angustiante em nosso país, porque sai governo entra governo e a educação continua sendo um supérfluo.

Esther – Esta opção é bem interessante, mas como se faria isto num país onde a tradição é a da oralidade, como o Brasil, e onde a cultura, o conhecimento são sonegados, e a inclusão digital é uma peça de mau gosto para fazer os tolos acreditarem em democracia?  Como se poderia atingir esse povo? E que povo?

Dade – Há gente de todo tipo na internet. A maioria, eu acho, quer encher o tempo e se comunicar sem maiores complicações. É fácil dizer que tem zilhões de amigos na internet. Fora umas exceções, não tem amigo nada, tem outros tantos em busca de comunicação. Povo é uma coisa indistinta, genérica. Mas as pessoas concretas que estão do lado de lá poderiam se beneficiar. Como fazer isso, é outra história.

Esther – Para encerrar nossa conversa e conversa não se encerra, mas para fechar a obra, e obra não precisa ser fechada, fica esta última pergunta que nos remete ao contrário da fala e seu ruído: pelo que vejo sua linha de trabalho é freudiana, quando a gente entra na sala e o analista espera que se fale alguma coisa, mas se não falar, tudo bem. A mudez, o silêncio, o nada dizer também são formas de expressão e comunicação, concorda? Fiquemos em silêncio então, ou...

Dade – É, o silêncio é um modo de dizer alguma coisa que fica menos clara, talvez, mas tem consistência própria. Gosto muito do silêncio, e em alguns casos é um indício de que alguma coisa está se processando. Dependendo de como se articula com as palavras, às vezes vale por uma palavra ou várias.

Você falou no que motiva afinal essa escrita que eu faço meio freneticamente. Acho que é um desejo de mais compreensão e mais acolhimento entre as pessoas. Não é bastante ter gestos de polidez e boa educação, é preciso mais, tentar entender a si e aos outros. Vejo que faço a volta e retorno a uma pose de Clarice que não queria ter. Mas o que me impele é isso mesmo: tentar entender e por causa disso viver melhor. Porque se você não fizer nada pra isso, que me parece tão essencial, a vida fica muito difícil (já é bastante).

Não falo da solidariedade que se propala na mídia global, embora reconheça que eles até conseguem resultados práticos. Mas é que eu acho que ser feliz depende de saber acolher, mas também de saber ser acolhido. Que é preciso ter a medida do bem que um gesto de empatia pode fazer, e só quem se sente compreendido e bem recebido pode ter esse gesto. É preciso ter espaço interior de manobra para deixar uma vaga para os outros, e o grande mal de hoje (que não nasceu hoje, mas está atingindo hoje uma tensão insuportável) é uma intolerância que nasce exatamente do não-entender, do não saber se identificar com algum traço de quem está a sua frente. É preciso saber refletir, e isso exige mais que nascer.

De alguma forma  Derrida fala nisso quando analisa a cordialidade, a necessidade de ser o anfitrião do outro: Le Pardon, La Vérité, La Réconciliation: Quel Genre


Um beijo pra você, viu?"

ADELAIDE AMORIM - Maria Adelaide de Amorim Oliveira é casada com Marcílio Alves de Oliveira há algumas décadas e mãe de cinco filhos. Graduada em Filosofia na UFRJ, tem mestrado em Literatura Brasileira e doutorado em Literatura Comparada pela UERJ. Especializou-se em Teoria Psicanalítica na Formação Freudiana e cursou a pós-graduação no IBMR do Rio de Janeiro. Escritora e psicanalista, começou a trabalhar bem cedo como professora do ensino médio e técnica de editoração da FGV; foi durante dez anos empresária da Texto e Contexto, empresa de editoração.


Do alto 

Décimo andar.
Um dia de mar tão quieto
nem uma brisa leve
na trança do jasmineiro da varanda
onde os insetos dormem.

Ruas desertas
ramos de asfalto quente
no tronco da cidade.

Do alto o mundo contempla
a praia mais afastada
que a vista não alcança da janela.
Alguma coisa ressurge das camadas
de sílica e distância
a sombra tatuada bem ao fundo
e coisas flutuando no silêncio
alguém que se imobiliza
e dilacera.

O mar travado
a vida
em transe.



de Adelaide Amorim