De adolescência, preconceitos e música
Por Vera Guimarães
Fico maravilhada, absolutamente seduzida, diante de alguém que canta, que toca um instrumento, enfim, diante de alguém que produz música.
Vou contar: na minha adolescência, década de 50, cidade do interior, eu, muito boba, preconceituosa, conhecia de vista certa família.
Um dos filhos era um moço muito feio, assim atarracado, uma cabeça muito grande, sobrancelhas baixas, um andar meio amacacado, um queixo imenso. Além disso, ele também me passava uma impressão de vulgaridade. Enfim, uma pessoa para a qual eu jamais olharia. Que tolinha!
Por essa época, começou o movimento estudantil, grêmio escolar, união colegial, e um dia teve uma reunião na casa dele. Depois de decidirmos o destino da humanidade, esse rapaz senta-se ao piano, sim, piano, o sonho da minha vida de menina pobre, e toca, sabem o quê? Manhattan, de Rodgers & Hart, tem coisa mais sofisticada? Claro que na época eu nem sabia quem eram os autores nem o nome daquela melodia que eu já conhecia das sessões de música americana na nossa rádio local. Fiquei desconcertada com aquela associação do que eu supunha ser vulgaridade e do que eu tinha certeza de ser requinte. Mas para mim ele continuava estranho.
Há poucos dias, revirando caixas de fotos antigas, lá estávamos nós numa parada de 7 de setembro, as escolas desfilando pelas ruas da cidade. Ele levava uma bandeira do Brasil. Examinando a imagem agora, de maneira alguma a figura dele corresponde à descrição acima, feita com meus olhos de então.
Recentemente também contei essa história para uma de minhas irmãs que ainda mora naquela cidade (eu já saí de lá há muito tempo) e ela me disse que o viu há pouco e que até que ele virou um senhor muito bem apanhado.
Por mim, nem precisava. Ele já se havia transfigurado com aquela música.