Por Lilian Zaremba
A história da Humanidade, desde os tempos bíblicos, pode ser observada como uma incansável luta contra as trevas.
Primeiro a fogueira, depois as tochas embebidas em gordura...
Mais adiante, os homens descobriram a luz das velas. Depois do fogo queimando lento na parafina, surgiu a lamparina e o bico de gás.
Tudo para fugir do temor da noite, a escuridão.
Se no início a Terra era sem forma e vazia, e as trevas cobriam o abismo quando deus disse: “Faça-se a luz!”.
Deus separou as trevas e chamou de “dia” essa nova face iluminada sob a Terra. E noite, esta face que ainda guarda as trevas. Está no Gênesis.
Mas o Homem, no seu desejo de conquista, também quis conquistar mais tempo. Tempo sem trevas. E daí descobre uma forma, forma elétrica de simular a luz do dia.
Então, a lâmpada elétrica ilumina. Ou apenas finge iluminar.
Porque a noite vem, com suas histórias, assombrações e orações. A Noite, cantada pelos poetas, apaziguada no sono, ou audível em um Noturno.
Noturno, durante o século 18, podia ser uma peça instrumental como a Serenata, mais tarde no século 19, encontraria sua outra forma em composição curta, lírica, especialmente para piano, como um Noturno de Chopin.
A noite, todos os gatos são pardos ?
Lembra o professor Manolo Florentino que Gilberto Freire, em seu livro “Assombrações do Recife velho”, descreve a noite recifense atribuindo o arrefecimento do temor do além em nossos dias ao aparecimento da luz elétrica. Sendo assim, naquela noite urbana iluminada pelo néon dos anúncios luminosos, os gatos ainda serão pardos?
O poeta Arnaldo Antunes resume:
luz na luz não é nada/ Só sombra é nada na luz.
A noite pode trazer o sono e antes dele, a prece.
Os que rezam a noite pedem algo para seus dias.
“Abertas as janelas do Céu, e livre o gênio da noite
O assaltante celeste em tantas línguas prosaicas enganou nossa terra e removeu os restos até agora... mas chegará aquele que eu quero”.
O poeta Hölderlin escreveu sobre sua Noite.
A noite de seus dias na Terra.
Novalis, outro poeta, também escreveu seu Hino a Noite, aonde canta...
"O noite única, ó volúpia! Poema único da eternidade!"
A poesia é exata: visível e invisível em seu universo móvel, mistério do espírito e não da linguagem. Ainda que na linguagem muito se encerre, como noite, e como dia.
Quem virá esta noite ?
Uma memória evoca a luz das estrelas, nos dedos de alguém.
Neste céu, a noite é fabricada
Num primeiro tempo, um homem é salvo por uma mulher.
No segundo tempo, uma mulher é salva por um homem.
Mas a mulher descobre que o outro homem é o mesmo que o primeiro homem, que o segundo é – e sempre foi e será – o mesmo que o primeiro. Essa é a revelação. Pois se o homem dita o mistério, a mulher revela o segredo.
Nouvelle Vague, um filme, um roteiro, uma noite e um dia, ou várias noites e dias como Dedos Distantes, conjugados por Jean Luc Godard neste homem encarnado por Alian Delon belo envelhecido, e incluindo solo musical de Patti Smith.
Como dois e dois são cinco
Embora o tempo passe e a idéia de um eterno retorno nos conforte, a volta nunca se dá para o mesmo lugar: o tempo desloca.
Noite e dia. Parâmetros de um, de nós dois. Mas nesta equação, um mais um não será dois. Serão vários. Assim como os dias e noites.
Voltamos ao século 19, aos Noturnos, mas não voltamos ao mesmo século 19 e seus noturnos.
A Humanidade quer fugir das trevas ou apenas quer poder melhor iluminar seu caminho ? Enquanto isso ao longe ressoam os noturnos de Chopin... metamorfose produzida com a ousadia dos que se atrevem a desafiar as trevas, mas sem deixar de apreciar as noites, até porque, elas fazem parte dos dias.
Distant Fingers, por Patti Smith, parte da trilha sonora do filme “Nouvelle Vague”, do cineasta Jean Luc Godard.