domingo, 1 de maio de 2011

SENHORA DO TEMPO. OS LAMBE LAMBE DO JARDIM DE SÃO JOÃO

Por Esther Lucio Bittencourt

Foto do Google
Jardim de São João, no centro de Niterói, no tempo em a cidade ainda era a capital do Estado do Rio, foi um grande cemitério indígena que pertencia à sesmaria concedida em 1568 aos temiminós. Mais tarde o jardim virou o centro da cidade, o Rossio.

Quando já não era mais o centro da cidade, não era de bom tom andar pelos lados do Jardim de São João , onde havia a igreja, de arquitetura belíssima, do mesmo nome e do santo padroeiro da cidade: São João Batista que começou a ser construída em 1842 e foi concluída em 1854 e por D. Pedro II, passando a Catedral em 1908.

Lugar de malandros, prostitutas e lambe lambe. E qual família tradicional permitiria que suas filhas fossem fotografadas por aqueles homens estranhos que vestiam um saco na cabeça para olhar dentro de uma caixa quadrada sobre um tripé, que fixaria o momento que em breve desbotaria e, do preto e branco esmaecido das fotos, ficaria um tom sépia, onde as feições mal eram reconhecidas?

Mas ir à missa todos precisávamos. No domingo silencioso da praça o canto das passarinhos nos pés de fícus só eram atordoados pelo pisar nas bolotinhas que caíam das árvores, pelo farfalhar dos vestidos exibidos pelas anáguas armadas de goma e murmúrios suaves, como se já estivéssemos dentro da igreja.

Os carros não podiam estacionar em frente à ela  a não ser pela rua onde passavam ônibus, parcos ônibus. Acredito que , se não me falha a memória, e nem ônibus como os de hoje eram, e sim lotações, e pelo local passavam sim, mais os troleibus, importados dos estados unidos, onde não deram certo, para substituir os nossos bondes, a maravilha do mundo, onde nunca fazia calor, visto que eram abertos de todos os lados. Só havia neles o teto, o piso e os bancos, além de poucos balaustres e o estribo onde se equilibrava o cobrador.

Os lambe-lambe, parados na praça, atarefados com seus baldes cheios de água, fotografavam algum casal vindo de longe, de traje domingueiro ou noivas, com seu véu e grinalda seguros pela família para não esbarrar na terra. Mas tudo era feito em muito silencio, exceto pela algazarra de algumas crianças que corriam em torno umas das outras levantando poeira com risadas abafadas sob os psiuuus dos parentes.

O sino da igreja badalava chamando para a missa das dez quando chegamos. Não era a Igreja onde íamos a missa dos domingos. As tradicionais eram a de Nossa Senhora do Viterbo e a do Salesianos. Domingo sim, domingo não íamos numa delas.

Mas haveria o batizado do amigo de alguém da família e, como ela andava junta para todos os cantos, talvez em memória dos que precisaram se desgarrar na Europa para fugir da perseguição nazista, durante a Segunda guerra Mundial, no Brasil costumavam não se desgrudar. Tanto que a casa da mãe de meu pai ficava ao lado da casa dos pais de minha mãe. Os filhos que casavam moravam na casa ao lado e a rua era povoada pela antiga família Speth, judia de nascimento, atualmente cristã nova, Lucio Bittencourt e Maia Duarte, por parte de mãe.
Nave da catedral de São João
Foto Google, Ney Niterói

Vida estranha; Vovó Martha, nascera em Berlim, Tia Hulda na Polônia e tia Helena na Rússia onde tia Hulda contava que uma vez os cossacos bateram nos casacos de frio delas com suas bolas de ferro , quando iam para a escola. Por isto, nunca mais saíram de casa. Dali foi só o tempo de chegarem ao Amazonas  e depois desembarcar no Rio de Janeiro. Somente as duas irmãs e algum filho, Vovó Martha e tia Hulda. Quem conseguiu fugir morreu com a espanhola.

Por parte de mãe, foram direto para Santa Catarina e depois, Niterói. Quando meu pai conheceu minha mãe, e olha que para a época os dois não eram tão jovens assim, mamãe já estava com 26 anos de idade, a família dele veio morar ao lado da de minha avó e eu fui a primeira a nascer nesta família desfalcada.

Por isto, por ser a primeira, gozava de certas benesses, como a de trazer na bolsinha sempre alguns trocados.

Jardim de São João
Foto do Google (Comunidade Lusa)
Nisto entram os lambe lambe que estavam no Jardim São João fazendo mistério, mistério este que eu queria desvendar. Queria aquele tempo detido para sempre na memória, nossos vestidos de laise, os de poá dos adultos, o cheiro dos perfumes soltos no ar, as jóias , o canto dos pássaros e o perfume cítrico das sementes de fícus amassadas na poeira do jardim que, na verdade, era uma passagem.

Pé ante pé saí da Igreja, somente minha irmã reparou, mas guardou segredo e fui com meus trocados contratar os serviços do lambe lambe mais próximo. Ele preparou minha pose, eu tremia, foi para detrás do pano encardido que pendia da caixa, que iria me registrar para sempre; mandou que eu segurasse a respiração e pronto. Lava daqui, lava dali e restei para sempre com um segredo entre as mãos. Uma foto com meu laço preso por milagre nos cabelos lambidos, sem cor definida, assim como meus olhos até hoje, mais claros num momento, em outros amarelos como os de gato.

Mas conseguia respirar: pela primeira vez eu possuía entre as mãos um segredo que não devia compartilhar com a família. A primeira a ver a foto foi Vera, minha irmã. Depois, quando saíamos da Igreja mostrei-a a mamãe, que fez ar de aborrecida e dividiu o acontecido com meu pai.

Em pouco tempo a família toda sabia e, por nobreza de espírito de minha avó Martha que considerava o cúmulo da  desonra a família não ser fotografada por fotógrafo famoso com estúdio particular,  estávamos todos ali em frente ao lambe lambe para imortalizar a ida ao Jardim de São João. Perdoou a neta e participou da alegria dela.

Catedral de São João Batista
Foto do Google
Não sei onde foi parar esta foto mas Jorginho, que guarda os álbuns da família, deve tê-la esmaecida ou quase transparente longe dos olhos, pois tudo está guardado num arquivo de metal perto do coração.

Mas juro que ainda nos vejo alinhados, prendendo o fôlego, com os passarinhos cantando à nossa volta e crianças com suas vozes alegres levantando poeira, resistindo à luz brilhante que saía do flash que o fotógrafo segurava para nos lembrar para sempre da família que éramos.

"De todos os meios de expressão, a fotografia é o único que fixa para sempre o instante preciso e transitório. Nós, fotógrafos, lidamos com coisas que estão continuamente desaparecendo e, uma vez desaparecidas, não há mecanismo no mundo capaz de fazê-las voltar outra vez. Não podemos revelar ou copiar uma memória". Henri Cartier-Bresson