por Egídio La Pasta, Jr
Antes de fazer a série Glee, o roteirista Ryan Murphy criou uma das séries americanas mais controversas dos anos 2000, cujos protagonistas eram dois cirurgiões plásticos com a vida particular sempre e cada vez mais complicadas. Adultério, um triângulo amoroso, pacientes das mais diversas patologias, psicopatas, assassinos, filhos problemáticos, transexuais e todo o tipo pouco comum ou raras vezes mostrados na televisão, ganharam vez e foco em Nip Tuck. Foram seis temporadas que exploraram e muitas vezes explicitaram o desejo mórbido de mudar, se transformar, em busca de um padrão estético, algumas vezes absurdo, que alguns perseguem a todo o custo.
Alvo de críticas, sendo a mais recorrente a falta de bom senso ao extrapolar os limites do que mostrava em Nip Tuck, Ryan Murphy a cada nova temporada, parecia não só provocar a audiência, mas forçava também seus dois médicos a um universo cada vez mais complicado, conturbado, onde a sexualidade era sempre testada e expandida a possibilidades novas, que a própria condição de cirurgiões, transformadores, reparadores estéticos, os permitia transitar. A moral nem sempre prevalecia, o senso comum era constantemente massacrado, apesar de acompanhar uma família, a série não tinha nenhuma atmosfera familiar, onde todos se odiavam a maior parte do tempo e estavam em processo contínuo de tentar sair de um caos criado por eles mesmos e para o qual não parecia haver solução.
Quando Glee foi criado, tive muita curiosidade para conferir como Ryan Murphy iria conduzir sua turma de adolescentes. Como ele estabeleceria o diálogo com o público jovem e onde haveria espaço para dialogar a diferença – tema recorrente na sua série anterior – e como a audiência o receberia. Glee mostra a vida de um grupo de estudantes do ensino médio, moças e rapazes com talento musical e artístico, que não sabem muito bem o que fazer com isso e por isso entram no Clube Glee, uma espécie de atividade extracurricular, onde eles podem cantar, tocar instrumentos e encenar suas canções. A maior parte dos alunos da escola não só rejeita o tal clube, como o hostiliza. São ‘loosers’, por isso o material promocional mostrava sempre os jovens com a mão fazendo a letra ‘L’ na testa. Loosers, os perdedores em potencial, à margem de uma juventude alienada que protesta contra eles, não só fazendo piada, mas jogando um copo de suco gelado no rosto.
A série virou uma febre entre os jovens. Eles se identificavam. Compreendiam e torciam pelo clube Glee. Abraçaram a causa da diferença que mais uma vez o roteirista mostrou. Os excluídos ganharam coro, ganharam novos admiradores, que se sentiam retratados na televisão. As canções resgatadas pelos jovens amadores viraram um sucesso, regravações e homenagens foram feitas a diversos cantores. Os atores viraram estrelas, a série virou um grande sucesso do Canal Fox.
O grupo reúne um cadeirante, orientais, líderes de torcida, uma adolescente obstinada pelo sucesso, alguns rapazes do time de futebol, uma negra acima do peso, entre outros tipos e também um jovem homossexual, afeminado e atento ao universo da moda e da música, Kurt. Os professores do colégio são infernizados pela técnica Sue Sylvester, que é a vilã mais querida da televisão. Os episódios que mostram Sue se relacionado com sua irmã com Down, parecem redimir a vilã, que por esse motivo escolheu sua assistente, também Down, para dividir suas maldades – e em pequenos casos, ajudar o Clube Glee. Suas frases de efeito são famosas. E a atriz Jane Lynch parece se divertir muito ao lado dos jovens atores.
Na segunda temporada da série, Kurt protagonizou a maior parte dos episódios, onde um rapaz do time do futebol o perseguia e o agredia constantemente por ser homossexual. A série então ganhou a minha atenção. Mostrar um adolescente ser perseguido por ser homossexual dentro da sua escola, lugar onde deveria se sentir seguro, em horário nobre na televisão, deveria e despertou muitas discussões. Kurt foi obrigado a mudar de escola, por sorte se apaixonou pelo rapaz mais bonito da nova escola, que contava com uma política de intolerância a violência e sofreu menos com a transferência. O agressor voltou à série no episódio dessa semana e se você não gosta de spoillers, peço que não siga a leitura do texto. Falarei do episódio que encerra a primeira parte da terceira temporada que vai ao ar hoje à noite na Fox Brasil.
À partir daqui, o texto apresenta spoillers do episódio que vai ao ar hoje à noite na Fox.
Dave Karofsky, o rapaz que agredia e perseguia Kurt, descobria que sua homofobia vinha do fato de também ser gay. Primeiro ele beija Kurt em uma discussão e alguns episódios na frente, ele se declara no dia dos namorados para ele, pedindo perdão por tudo o que fez a ele. Porém, um dos rapazes do time de futebol, presencia parte da cena e aquilo vira uma piada entre os rapazes. Karofsky passa então ser vítima de homofobia no colégio, mais precisamente no vestiário, entre seus amigos. Como ninguém sabia, esse fato ganha um peso muito maior para ele, jovem, desesperado, cheio de dúvidas, inseguro e sem ninguém para dividir a aflição da violência gratuita e desmedida. Ao chegar em casa, de forma premeditada, tenta se matar.
Mais uma vez, em horário nobre na televisão americana, Ryan Murphy mostra um jovem homossexual, vítima de bullying, sem o apoio dos pais e dos amigos, tentar se matar.
Esse episódio especificamente me parece um dos mais cruéis da série e certamente o mais dramático, ao terminar com um desastre de carro que coloca em risco a vida de uma das protagonistas. É como se ele dissesse aos jovens que a vida pesa e é difícil também. E que o suicídio não soluciona coisa alguma. Mas é também uma mensagem aos pais desses mesmos jovens suicidas, para que percebam seus filhos e os amem e respeitem suas escolhas, sejam elas quais forem. É um diálogo muito vivo que ele estabelece com a audiência – baseado num caso recente, onde um jovem americano gay cometeu suicídio por não suportar a violência das pessoas ao redor – e muito importante porque coloca a discussão dentro das salas de aula, nas salas dos apartamentos, nas rodas de amigos.
Me pareceu corajoso e muito importante para qualquer movimento de qualquer bandeira que lute por igualdade de direitos, por liberdade de expressão e por permitir que as pessoas tenham ciência de que mesmo nos dias de hoje, as pessoas se matam por serem julgadas arbitrariamente e no caso dos jovens, sem saber ou poder se defender.
Glee volta no dia 10 de abril.