Eloísa Helena Maranhão
“Não é muda a morte. Escuto o canto dos enlutados
selar as rachaduras do silêncio. Escuto seu dulcíssimo
pranto florescer meu silêncio gris.” (Alejandra Pizarnik)
No princípio era o nada. No fim era o nada, também. Que demônio ou deus tinha inventado que o meio era alguma coisa que não o nada?
Ana Maria dos Anjos, olhando o rebanho de carneiros que pastava lenta e silenciosamente do outro lado da rua, começou a dissolver-se em água, primeiro flutuando, depois ficando encharcada por dentro e por fora, a pele enrugando toda, afundando até que se dissolveu completamente, mas com sua consciência funcionando normalmente. Seja lá o que for normal. Tudo nela se dissolvera, menos sua consciência. Por enquanto, que mais tarde vocês verão até onde chegou.
De um lado da rua onde seu sótão ficava tinha um rebanho de carneiros pastando numa pracinha verde, e do outro uma manada de porcos, todos marrons, diferentes das ovelhas que eram creme clarinho ou brancas. Ana Maria decidiu-se mandar o bebê engatinhando até as ovelhas, e a cadelinha até aos porcos.
Era uma lindeza de se ver aquele bebê gorducho, com covinhas nos braços e pernas, todo rosadinho de sol, engatinhando em direção às ovelhas. Mas a cadelinha era mais linda ainda, toda vestida de branco, de organza de seda muito leve, quase transparente, toda bordada em pedrarias e fitas coloridas de seda formando florzinhas, uma cadelinha mimosa vestida de noiva indo ao encontro da manada a que se destinava.
O bebê, seu filho e único dos amores de Ana Maria, juntamente com a cadelinha branca, de branco vestido bordado, engatinhava peladinho, vestido apenas com uma fralda descartável, um boné de marinheiro azul e branco e meinhas nos pés fofinhos, ao encontro das ovelhas a que se destinara.
Ana Maria dos Anjos olhava ansiosa e com muito cuidado para os dois lados da rua, postada na janelinha de seu sótão, acompanhando o destino do bebê e da cachorrinha.
Por que enviara seu bebê e sua cadelinha tão amados para os porcos e às ovelhas? Acaso não sabia que alguma coisa de ruim podia acontecer com um deles, até mesmo os dois, um atropelamento ao atravessar a rua, uma bala perdida, uma enxurrada levando-os pra um bueiro e o afogamento, uma insolação seguida de desidratação, um raio na tempestade que se aproximava, tanta coisa poderia ocorrer nas ruas, ao relento, fora do abrigo doméstico onde tudo parecia mais seguro. Sim, ela sabia de todas essas hipóteses e muitas outras mais, aviões caindo, trens desgovernados, terremotos não detectados, carros e caminhões desembestados dirigidos por alguma besta alcoolizada, sim, Ana Maria dos Anjos sabia mais que qualquer pessoa dos perigos que andam à solta e rondam nossas vidas. Mas ela precisava mandar o bebê e a cadela para a rua, era necessário e absolutamente impostergável, já que o homem vermelho havia lhe aparecido novamente e dado as ordens. Não, não eram ordens verbais, o homem não falava com ela dali do canto do sótão onde estava e a olhava com seus olhinhos rasgados de deus hindu (ou seria chinês, perguntava-se Ana Maria dos Anjos, mais uma vez sem conseguir resposta alguma), pois o homem vermelho de longuíssimos braços a olhava e ela sabia o que devia fazer, ele lhe ordenava como agir dentro de sua própria mente, como uma telepatia. Está na hora, Ana dos Anjos – ela não entendia por que ele nunca a chamava de Maria também, abreviando seu nome tão bem escolhido pela mãe, tias e avós mais de quarenta anos antes, está na hora de enviar seu bebê e sua cadelinha à rua, um aos carneiros e outra aos porcos. E se está na hora, a hora é essa, faça e não discuta. Aja. Sim, você tem livre arbítrio, Ana dos Anjos, pode escolher se manda o bebê aos porcos e a cadela às ovelhas, ou a cadela aos porcos, ou os dois aos porcos, os dois às ovelhas, ou, ou, ou. Você é livre, Ana dos Anjos, tem liberdade de escolha, como os espíritas tanto desejam e pregam, dizia-lhe mansa, pausada e telepaticamente o homem vermelho, agora vá e faça, avante!, go, go!, voilá!, e apesar do livre arbítrio – ou talvez justamente por ele mesmo - alea jacta est.
Naquele dia começou a chover. Ana Maria ainda não se dissolvera, isso foi depois da chuva, aquela chuva quase primal, um temporal ruidoso, carregado de raios estridentes e trovões atormentados, uma chuva de evaporação das muitas águas dos rios, mares, lagos, lagoas, açudes, represas, calotas polares descongelando, águas que teimavam em não ficar paradas e tranqüilas num planeta de chuvas, terremotos, maremotos, tsunamis, onde um raio de sol leva 8 minutos para chegar do sol aqui, e só saberíamos se o sol explodisse ou esfriasse ou acontecesse qualquer outra coisa com ele, 8 minutos depois, quando então veríamos a explosão ou a outra coisa qualquer.
Pois isso tudo dava em Ana Maria dos Anjos, postada na janela de seu sótão, uma intranqüilidade, uma sensação de estranheza, e para passar o pavor que tomava conta dela ela se deitava no chão, esticada como uma estrela de cinco pontas, mas isso não resolvia o problema – nem a estranheza nem o pavor – por que deitada ali sentia o chão se mover sob ela, a rotação da Terra atingindo hum mil seiscentos e setenta e quatro quilômetros por hora, vamos ver em números que dará mais pavor ainda que escrito – 1.674 km/h, é rápido pra cacete, e Ana Maria dos Anjos suava e angustiava-se com essa velocidade toda da Terra rodando em torno do Sol e, pior ainda, rodando sobre si mesma também.
O mundo era um lugar vertiginoso, violento com suas explosões e buracos prontos a engolir até a luz, a vida era assustadora e nada mudaria isso, nem religiões, nem filosofias, nem monges recitando a sílaba omm, nem freiras rezando milhões de terços, nem hippies de mãos dadas concentrando-se na paz universal, nem psiquiatras receitando seus medicamentos, nem psicoterapeutas com suas terapias mágicas, nem budistas meditando em ondas alfa, nem místicos fazendo mentalizações e relaxamentos, nem desesperados entupindo-se de drogas ou correndo com seus carros, o universo era apavorante, como deveria ser para todos os humanos que tivessem cérebro pensando. Quando pensava, a única importância que urgia e rugia era: preciso morrer. Desejo morrer. Cansei de viver. Viver é perigoso e cansa, como cansa. Viver é como estar enterrado num terremoto, sem saída, morrendo aos poucos. Morrer de vez é bom, é saudável, alivia e soluciona. Ana Maria dos Anjos não tinha problemas com a morte, não a sentia como estranha, era a única não-estranheza, e essa ela conhecia e amava. Estava a um centímetro dela, Ana Maria e a morte.
Talvez fosse esse o maior defeito e problema de Ana Maria: pensar demais; cada dia um pensamento novo, uma estranheza nova, ou antiga, que voltava a incomodar. Como os sentimentos ilhados do Fagner, pensar incomoda, sentir dói; e a meio caminho dos pensamentos e sentimentos, sem saber o que fazer com eles, Ana Maria foi se introjetando a si mesma e ao mundo, numa tentativa desesperada de ser rúcula, agrião, quiçá um rabanete. Por que a mãe da Rapunzel precisava tão desesperadamente de rabanetes, pensava Ana Maria dos Anjos, sem respostas e sem consolos. Viver não era confortável para ela, que pensava e sentia demais.
Sentia o sol, a chuva, os raios, as rajadas de ventos em si mesma, na sua pele, entrando pelos poros e tomando conta dela. Era como um ataque epilético, aqueles raios chuvas trovões ventos e sóis dentro dela e iam se transformando em lesmas gosmentas, tomando forma, criando massa corpórea, e saíam para sua pele, de dentro para fora, aqueles vermes que cuidariam de seu corpo na morte, mas já agora anunciando sua presença.
Nessas horas, mais que nunca, sentia necessidade de rotina, de um canto seu, um lugar na cama, marcado por seu corpo, comidas conhecidas, roupas velhas e já muitíssimo usadas, palavras já ditas há anos, ou nenhuma palavra, de preferência. Ana Maria dos Anjos já não suportava sair de casa, mas precisava sair. E fazer coisas. Tomar decisões. Pensar. Sentir. Reagir. Agir. Viver exigia dela algo que ela não suportava dar, ou nem tinha para dar.
Nesse impasse passou a sentir uma necessidade extrema de cortar os pés, a sola deles, assim bem cortadinhas devagarinho, passando a lâmina do estilete, fazendo cortes que aos poucos começavam a gotejar sangue, até formar um fio fininho escorrendo e pingando. Cortava em fatias paralelas, bem cronometradas, pra ficarem todas iguaizinhas em tamanho e profundidade. Primeiro apenas passava a lâmina afiadíssima, fazendo sulcos rasos e longos, depois ia aprofundando como criando pequenos igarapés fundos e curtos. A dor que sentia era muito bem vinda, era uma dor que aliviava, que desviava a atenção do que estaria pensando ou sentindo.
Além disso, tinha o ganho secundário de não poder sair com os pés feridos daquele jeito, impossibilitados de pisar no chão, com risco de infeccionar ou continuar sangrando, e era ótimo ser obrigada a ficar no sótão, no máximo olhando pela janela.
Vejam só como funciona a vida, foi só Ana Maria dos Anjos se distrair com o estilete nas solas dos pés e pensamentos sobre Rapunzel e rabanetes, budistas, monges, hippies e outros desesperados, que quando novamente prestou atenção nos lados da rua a tragédia se tinha instalado.
Seu bebê gorducho e rosado era agora uma massa no chão, pisoteado pelos mansos e inofensivos carneirinhos, estava ali do outro lado todo amassadinho como um pastel. Nem tinha chorado, acho, que se tivesse feito algum barulho Ana Maria dos Anjos talvez tivesse notado, mas de qualquer modo não teria como intervir ali da janela do sótão com seus pés feridos e sem condições de sair.
Desviou o olhar pro outro lado, ali onde sua cachorrinha fofa vestidinha de bordados brancos, fitas, rendas e sedas estava, e só o que viu foi o vestidinho ensangüentado, esticadinho e todo mastigado no chão, sem nem um pedacinho de cachorro dentro, devorada que fora pelos porcos marrons.
Ana Maria dos Anjos pensou, num lampejo de lucidez, antes de dissolver-se na chuva, que o negócio era aprender-se a ser rúcula, agrião, nabo, rabanete. Como os da mãe da Rapunzel.