terça-feira, 10 de setembro de 2013

ANA MARIA DOS ANJOS, A QUE NUNCA FOI - NEM ANJO.



 Eloísa Helena Maranhão




I.
“Não olhe muito tempo para dentro do abismo, que
o abismo começa a olhar dentro de você.”
“A esperança é o derradeiro mal;
é o pior dos males, porquanto prolonga o tormento.”
(Nietzsche)

Ana Maria dos Anjos passou a caminhar pela casa desabada, andando pelo meio dos escombros; nem se preocupava em desvencilhar-se de nada, pois que tudo era apenas entulho, poeira, pedaços e resto do que nunca realmente havia sido, e não se pode reconstruir o que nunca foi. Andando, encontrou 282 duendes mortos, petrificados e escurecidos; encontrou também pequenos invólucros em tons de castanho, dourado e âmbar, e alguns prateados e azulados; de início considerou que eram cascas de cigarras e asas de libélulas escurecidas, mas azuis e prateadas? Só então, contando-as, apontando com o dedo para cada uma, de cada tipo, e recontando e conferindo, absolutamente surpresa e aterrorizada foi que descobriu: eram 578 fadas, 96 silfos e 40 elfos, assim de número redondinho mesmo, que a exatidão às vezes acontece de acontecer, fadas, silfos e elfos sequinhos, só os pequenos invólucros conservados.
No princípio era o frio. E a escuridão. Como era frio e escuro ali. Não “fazia” frio nem escuro, “era”. Algo difícil de entender, se não se tivesse vivido. Ana Maria dos Anjos tinha vivido na superfície a vida toda e, portanto, aquele frio e escuridão a incomodavam. No tempo da superfície ela vivia como quem não sente frio, nem se incomoda com a falta de visão, pois tinha esperança. Melhor dizendo, sofria de esperança, posto que esperar, lançar-se no futuro, projetar-se à frente não passa de mera doença da alma, engano, ilusão. Mas ao menos vivia, ou achava que.  
Só depois que passou a viver nos escombros começou a perceber que vivia procurando paixões, inventando paliativos que servem para nos desviar do único horror realmente importante: a morte, a consciência do escoamento do tempo. E as paixões e paliativos nos desviam também da própria vida. Por que uma hora – literalmente – a casa cai. O universo rui, o chão se abre e nos engole num terremoto profundo. Sobram os escombros ou se desenterrar do meio deles gerando o mito infecundo – o totem. Ou o nada. Assumir a intensa e profunda falta de significado da vida e continuar. Continuar o quê? A farsa das paixões e dos paliativos.
Meu Deus, lembrou Ana Maria dos Anjos ali no meio dos escombros, quando enfim havia se deixado demolir, eu já pensava tudo isso desde antes da adolescência, já sabia dos terremotos, da demolição, do nada, do totem, do frio e da escuridão. Como, então, consegui me manter à superfície, vivendo a farsa, durante todas essas décadas? Que tipo de artifício havia usado, pensava ela tremendo e apavorada, que artifício usara todo esse tempo para se afastar de si mesma e do enfrentamento com os fantasmas?
Foi então que Ana Maria dos Anjos passou a caminhar pela casa desabada, andando pelo meio dos escombros. Achou que tinha passado os anos de superfície alimentando os duendes com papas de aveia e mel, e que atraía as fadas, silfos e elfos com o som das flautas e bandolins, mas tudo que fizera foi assassiná-los, envenenando-os. Passara a vida matando ídolos e produzindo os fantasmas que agora, longe da luz do sol e de qualquer barulho, vinham assombrá-la, mas também lhe fazer companhia. Não havia mais o que esconder de si mesma, o que dissimular, ali no meio dos escombros, onde tudo era frio, escuridão e silêncio, só podendo saber-se a si mesma.
Ana Maria dos Anjos, por fim, percebeu que nunca tinha sido, nem anjo nem nada, e que a superfície, o que considerara quente e barulhento e iluminado também era uma parte da terra arrasada. Deserto era tudo que havia no mundo, e ali teria de viver para sempre, sem retorno, sem redescobertas – já que não existiam descobertas, sem reconstrução – já que nada havia antes para que se pudesse reconstruir, sem redenção e sem esperança.
Ana Maria dos Anjos estava curada da esperança.
II.
“Há entre mim e o real um véu...
Há, em mim, uma impossibilidade de existir
De que abdiquei, vivendo.”
(Fernando Pessoa)

O que mais incomodava Ana Maria dos Anjos eram as sombras. Depois, os sonhos das noites quase insones. Quando vivia na superfície chamaria de pesadelos, mas depois do desabamento, da dor e do sofrimento, eram apenas sonhos menos ou mais angustiantes. A angústia, ali nos escombros, durava poucas horas, não mais dias, como antes. Demorava a dormir, e quando dormia logo acordava sobressaltada com os sonhos forjados sabe-se em que porões e sótãos de histórias de terror ou suspense. Suava medo e dor. Era culpa das sombras, que haviam invadido sua vida. Se tivessem continuado lá fora, ocultas pelo sol, mas não, escaparam e se instalaram. Parecia que irremediavelmente, mas era experiente demais para saber que nem sombras são para sempre, para sempre não existe.
Dormia aos soluços, um cochilo aqui, um barulho ali, um sobressalto acolá; outro cochilo, um pesadelo e acordava; mais um pedaço de sono e um grito na rua, um carro passando, o vento. Uivo de leão no meio da madrugada era o pior, acordava se chacoalhando de arrepios. Daí entendeu por que os gringos achavam que no Brasil e África tinha selva por todo lado e macacos, onças e leões soltos, era de insônia que eles sofriam – os gringos, não os macacos, leões e onças, evidente.
Ana Maria dos Anjos não parava de pensar um só instante, seu cérebro funcionava noite-e-dia-dia-e-noite-acordada-ou-dormindo, era quase uma epilepsia de pensamentos. Às vezes achava que devia estar ficando louca de tanto pensar, mas então lembrava que era assim desde pequena, inventando histórias, criando cenas – sempre trágicas e sanguinárias – e sossegava. Nunca fora do tipo filósofa, nem cientista, de ficar pensando de-onde-viemos-para-onde-vamos-deus-existe-porque-vaca-dá-leite-porque-a-chuva-chove e outras importâncias vitais. Só pensava bobagens em que era a heroína dramática, uma heroína doce e de beleza inóspita – isso se soubesse o que era inóspita, e tivesse sido doce algum dia -, e em que a mocinha nunca morria no final, e, se acaso morresse, era morte fingida só para ouvir os desesperados chorando copiosamente e dizendo oh, por que morreu, oh vida, oh céus, como o mundo empobreceu sem ela, nunca mais haverá dia ensolarado. A partir de sua morte só sobrava ressuscitar gloriosamente ou o inglório fim do mundo.
Dentro de Ana Maria dos Anjos, e agora também fora dela, na casa desolada, era um mural de Rivera, de Picasso, provavelmente Guernica, cheio de cores fortes, formas e deformações, monstros aos pedaços, muito sangue, lágrimas, enchentes e destruição, uivos e lamentos de cortar o coração do próprio Franco ou de Pinochet, de fazê-los cair de joelhos, arrancando as medalhas, deixando as fardas em frangalhos com as próprias mãos e pedindo perdão, aos gritos enlouquecidos, à humanidade. Evidente que a humanidade nem tchum, e eles morriam loucos, sedentos de lábios rachados e a língua cheia de bolhas de tons arroxeados, falando frases desconexas, com as unhas imundas e crescidas rasgando a carne dos dedos e os cabelos emplastados, emaranhados, nada poderia pentear novamente aquilo que outrora havia sido chamado de cabelos. Quase uns Nabucodonosores sem porfiria, arrastando-se pelo chão de terra dura e pedregosa. E o corvo dizendo: sem perdão, sem perdão, sem perdão.
Como era tudo só dentro dela, nem Franco e Pinochet, nem Hitler nem Mussolini puderam ter essa fantástica experiência de humilhação e arrependimento que poderia ter salvo suas almas empedernidas por mais centenas de encarnações. Portanto, estavam condenados a voltar e voltar, e sempre sem perdão. E o corvo dizendo: perdão?, nunca mais!
E o que é só de dentro, por mais dialéticos que sejam o de dentro e o de fora, o que é só de dentro só pode ser sentido, nunca compartilhado. Se estivesse certo que o que não se compartilha se perde, então tudo estaria perdido, sem possibilidade alguma de encontrar. Perdido eternamente, sem redenção - como no inferno dos cristãos -, se correto fosse que tudo se precisa compartilhar.

Dentro de Ana Maria dos Anjos o Pequeno Príncipe sussurrava, o essencial é invisível aos olhos, mas a Pequena Princesa dos dedos furados de espinhos das rosas rosnava: o essencial é incompartilhável e irrepartível, manda esse menininho doido e chato de volta pro planeta dele – yankee, go home, e se precisar mesmo de um estrangeiro fone home to ET, que ele é bem mais evoluído, e traga Ioda junto, ouça o que eu digo, mulheres sempre sabem mais que homens, do futuro e do passado, e, ah!, principalmente mais que homens meninos. Se guerreiros são meninos, as meninas são sacerdotisas, e as velhas, sábias; entre uns e outros fiquem com as umas.
A tal da Pequena Princesa não parava de falar, de falar, espetar os dedos nas rosas e chupar o próprio sangue, claro, que espetava só os próprios dedos, não os alheios, pois morria de medo de ser presa, torturada, condenada e executada. Falava tanto, dando razão aos que chamam as mulheres de faladeiras, que parecia um vapor de panela de pressão no fogo, piuííííííí, tic-tac, tic-tac, piuííííííí... mas é trem ou relógio esse trem, perguntaria o Grande Rei Intelectual envelhecido e quase careca, e a Princesa, noiadinha de tanta chateação e impaciência pararia de falar, se calando para sempre, no more train, no clock, lives me alone, oh, baby, yankee go home, e vão se fuder. Suas últimas palavras, para dentro de si mesma, a respeito do de fora. Tudo rosnado baixinho, mas rosnado. Um dia viraria grito. Tudo era um dia, e nesse dia seria ou a ressurreição ou o fim do mundo. Ou o presídio. Ou o hospício.
Enquanto não vinha o dia, Ana Maria dos Anjos fazia aniversários, não havia como escapar, e a cada aniversário uma coisa mudava, uma palavra esquecida, uma frase não dita, até que se calou para sempre. Também parou de espetar os dedos, mesmo as rosas já tinham sido extintas dos jardins há décadas – as rosas e os jardins. Então trocou espetar os dedos por arranhar o couro cabeludo e provocar pequenas feridas que sangravam, lambendo o sangue que limpava nos dedos, é louca, diziam uns, é TOC, dizia o médico, é médium sem desenvolvimento, diziam os espíritas, é demo, diziam os bons cristãos. Só ela sabia: não era nada disso. Não era. O problema era justamente esse: enquanto todos eram, ou vinham a ser com o passar dos anos, Ana Maria dos Anjos não era, e a cada aniversário deixava de ser o que porventura tivesse conseguido acumular no ano. Tinha sido uma maldição ancestral, vocês nunca serão, até à 8ª geração, pois as estirpes condenadas a não ser, não serão. E ela não foi.



III.
“Lugar em que há decadência.
Em que as casas começam a morrer
e são habitadas por morcegos.
Em que os capins lhes entram,
aos homens, casas portas a dentro.
Em que os capins lhes subam
pernas acima, seres a dentro.”
(Manoel de Barros)

Não, Ana Maria dos Anjos não faria como Septimus Warren Smith, nem as janelas tinham sido altas, ali, e agora enterradas, e agora enterradas. (Que se faz com janelas enterradas, que nunca mais se abrirão?) Além disso, estava grávida. Isso ficava rodopiando (sim, rodando como pião e piando como uma ninhada de pintinhos bem escandalosa) na sua mente, grávida grávida grávida, grávida entre os escombros, grávida no poço destampado – sim, mazela pouca é bobagem, tinha caído dentro de um poço sem tampa, por baixo dos escombros. E agora, grávida – mazela pouca é bobagem. Que se faz com uma criança no meio dos escombros? Mostram-se a ela os duendes, fadas, elfos, silfos, pra que brinque como bonecas-fósseis? Ou tapa-se-lhe os olhinhos, brincando de cabra-cega, isso aqui é tudo irreal, nananenê, lá fora tem um mundo ensolarado, borboletas e aves voadoras, fontes com água potável, e tudo o mais, tudo o mais, criança, nananenê. Lá fora é o real o real o real. E cá dentro são os escombros, é o poço com essa agüinha verde-vitrificada no fundo, uma água insalubre que envenena. Como explicar isso pra uma criança? E cá dentro só existe dessa água, como dar de beber dessa água a quem quer que seja? Ninguém poderia sobreviver a água de fundo de poço destampado. Deve ser domingo, pensou, estou ouvindo hinos de alguma igreja não muito longe. É incrível, continuou pensando e falando baixinho – quem sabe pros vírus daquela água, que ainda evoluiriam, talvez? -, é incrível como os viventes religiosos cantam alto, e vibram tanto, para um deus inexistente. Louvam o vazio, domingo após domingo, ano após ano. E eu que sou maluca, pensou, dona de uma lucidez súbita e intensa. Mas deixa estar – falando novamente – laissez faire, laissez passer, que tenho eu com as vozes dos seres religiosos? Foi só falar isso e esconjurou-os, no ato parou de ouvi-los cantar.
Árvore, pensou agora, lançar raízes pro fundo do poço e os galhos para cima, rompendo os escombros, é isso que quero fazer, vou ser árvore, ervas, começou a recitar,  
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Quem terá escrito isso, Pessoa, Campos, Caieiro, ou o outro heterônimo, já esqueci o nome dele também – era assim, ali no poço dos escombros as palavras iam esfumaçando, se desfazendo, e só sobravam os pensamentos, que também se desintegravam com o tempo, seria isso morrer?
Mas não importa, não importa – nada importa, rodopiava por dentro, nada importa, criança, nada importa, mulher – serei árvore com ramos e galhos e folhas, com umas florinhas brancas grudadas em mim – tronco -, uma jabuticabeira, serei uma jabuticabeira, e quando as jabuticabas nascerem e ficarem pretas – como bulbos da peste -, os passarinhos virão bicar as frutinhas, arruiná-las com seus bicos, para que outros seres não se alimentem delas, principalmente os seres religiosos (a música estava alta, de novo, desafinada, devem cantar alto assim por que o senhor-deus-deles está velhinho, surdo, e desejam acordá-lo, como os fogos das festas juninas tentam inutilmente acordar João Batista adormecido e sem cabeça há 2 mil anos. Já a desafinação não tem motivo, nem tudo tem que ter motivo, até os religiosos deviam aprender isso).



IV.
“Luares encontrarão só pedras mendigos cachorros.
Terrenos sitiados pelo abandono, apropriados à indigência.
Onde os homens terão a força da indigência.
E as ruínas darão frutos.”
(Manoel de Barros)

Enquanto andava entre os escombros, através das galerias do poço destampado, pois era um tipo de poço-catacumba, Ana Maria dos Anjos tropeçou numa caixinha de papelão pequena, muito velha e suja, escrito: jean noblet tarot. Que será isso, pensou com um resto de curiosidade, abriu a caixinha que parecia de cigarros ou baralho, e era mesmo um baralho. De tarô. O Tarô de Marselha. Só tinha uma carta dentro, também velha, suja, desbotada, muito manuseada, mas em estado bom o suficiente para ver um homem de roupas muito coloridas, com uma vara e uma trouxinha nos ombros, um andarilho?, na cabeça um chapéu de bobo da corte com bolotas coloridas, e apesar das roupas estava nu, de costas, com a bunda e o saco aparecendo, acompanhado por um cachorrinho. Ana Maria dos Anjos nunca tinha pensado em ter um cachorro, mas sentiu falta de um, não por muito tempo, que logo um cachorro a estava seguindo, lambendo seu calcanhar esquerdo a cada passo que dava. Bem vindo, cachorrinho, ela não disse, mas o cachorro entendeu e ela também. A bem da verdade era uma cadelinha, mas Ana Maria dos Anjos só notou isso quando a pegou no colo, muito, mas muito tempo depois, num entardecer escuro de nuvens de chuva, e enquanto a noite despencava sobre a casa desolada a única companhia que lhe consolou foi a cachorrinha que vinha lhe acompanhando desde o dia da descoberta do tarô, sem que Ana Maria dos Anjos tivesse dado por si.
Na noite que se seguiu à manhã (pois até nas casas desoladas, em meio aos escombros, as noites sucedem aos dias que sucedem às noites, sempre indefinidamente, ad nauseam, com ou sem sacrifício de virgens e jovens ao sol), pois na noite que se seguiu à manhã em que tropeçou na caixinha do tarô, depois de encontrar o Louco dentro da caixa, gargalhando e falando coisas incompreensíveis e empunhando a vara com a trouxa na direção de Ana Maria dos Anjos, enquanto os dois cachorrinhos – a bem da verdade, o cachorrinho e a cadelinha – latiam e pulavam e esfregavam as caras com as patas, balançando os rabinhos, nessa noite Ana Maria dos Anjos encontrou outra carta embaixo de uma pedra, no meio dos escombros.
Sosseguem, que Ana Maria dos Anjos não encontrou nem vai encontrar todas as 78 cartas do tarô, com os 22 arcanos maiores; ela só encontrou essas duas, o que já está de bom tamanho para explicar o que ali se passou, e nem precisamos de Jung pra falar de sincronicidade, por que todos entendemos intuitivamente do que se trata, assim como Ana Maria dos Anjos, a que nunca foi, não entendeu nada, por que quem nunca foi nem será também nada entende, nem intuitiva nem conscientemente. O que não significa que Ana Maria dos Anjos fosse burra, obtusa ou mesmo deficiente mental, pelo contrário, era inteligente, esperta e com todas as suas faculdades mentais funcionando normalmente (seja lá isso o que for); bom, a bem da verdade, todas é exagero, ninguém possui todas as faculdades mentais preservadas, possui?, pelo menos de perto, essa distância em que ninguém é normal, mas Ana Maria dos Anjos não era exatamente normal nem de longe, como muitos outros. Sorte dela que existem muitos outros nas mesmas condições. Mesmo que, para Ana Maria dos Anjos, os muitos outros existentes, preservados ou não, não fizessem a mínima diferença na sua vida, inclusive era ótimo que estivessem longe, no tal mundo real, enquanto ela se encontrava na casa desolada, ali onde o real não chegava perto. Apesar de existir, tanto o real quanto os demais outros existentes, e existir de maneira doentia e muito sofrida.
Pois a segunda carta que encontrou naquele mesmo dia era uma torre de tijolos vermelhos, arrebentada por um raio do céu, com dois homens sendo precipitados de cabeça para baixo, escrito “La Maison-Dieu”, sendo que Ana Maria dos Anjos, pouca afeita às interpretações formais e explicações oficiais, e às simbologias, disse, bem feito, é isso que devia acontecer com os templos, igrejas, sinagogas, mesquitas, um raio devia cair sobre cada um e todos ao mesmo tempo, pra acabar com essa encheção de sermões tradicionais e hinos desafinados e ensinamentos morais ultrapassados e hipócritas e/ou impossíveis de serem aplicados por seres humanos nas suas vidas. E tarados e pedófilos travestidos de sacerdotes.
E não venham os incautos dizerem que Ana Maria dos Anjos nem percebeu que essa carta falava de sua própria vida, da sua casa desolada, dos escombros onde estava, por que, ah, incautos vorazes em busca de frestas para julgar os que não foram, essa carta, para Ana Maria dos Anjos, era indício de libertação do aprisionamento e novo recomeço, além de destruição da rigidez. Se foi realmente isso, não sei, nem importa, mas que indicava isso, indicava, o que só prova que Ana Maria dos Anjos, como todo e qualquer um que não era nem foi nem será, era especial e merecia outra chance. Chance essa que no mundo real nunca acontecia, mas estava lá, à espera, sempre espiando pela mesma fresta que os incautos vorazes abriam para julgar.
Chance doentia, da mesma doença da esperança.

V.
“Altas horas da noite ela vagueia…
E ao luar suavíssimo, que anseia,
Põe-se a falar de tanta coisa morta!”
“É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!”
 (Florbela Espanca)

Margarida II, rainha da Dinamarca, apareceu exatamente à meia noite no portão da casa desolada. Quando Ana Maria dos Anjos a viu, levou um pequeno susto com aquela mulher morena, muito alta e magra, de cabelos desgrenhados, sem a maioria dos dentes, sorrindo de uma maneira meio idiota, de calça comprida laranja e blusa verde abacate, sem meias e com sapatos masculinos marrom escuro, provavelmente vários números maiores que o pé da rainha, e ela pediu água, estou com uma sede, minha súdita, traga-me um pouco d´água bem gelada em taça de cristal, pediu assim desse jeitinho mesmo, falando traga-me, e não “me dá” como pediria qualquer mortal que não fosse da realeza.
Ana Maria dos Anjos ficou preocupada, não tenho taças aqui, nem nada de cristal, só uma caneca de lata em que bebo água do poço destampado, pode ser, minha monarca? Que seja, se outro jeito não tem, ajeitado está, retrucou imponente Margarida II, rainha da Dinamarca, bebendo sem pressa aquela água gelada depois de um dia inteiro sob um sol de rachar, varrendo as ruas com sua vassoura de palha amarrada com um laço de fita de cetim vermelho muito brilhante, que é a cor da realeza, explicou gentilmente Margarida II, como se falasse a uma criança bobinha (ou a uma súdita, o que dá na mesma), há que se ter instrumentais belos, beleza é fundamental, minha criança, em tudo que fazemos colocamos nossa alma, o que significa, senhorita, que devemos demonstrar o mais belo de nós, até mesmo na amarração de uma vassoura.
Claro, claro, minha realeza real, até mesmo numa vassoura, mas o que uma rainha faz varrendo ruas? Oh, tolinha (Margarida II, rainha da Dinamarca tinha essa postura maternal, fluida e leve que os verdadeiramente superiores demonstram ante seus subalternos naturais), oh, criança, os seres viventes varrem ruas por dois motivos essenciais: limpá-las para que o lixo e a sujeira não se acumulem e apodreçam e causem doenças, e para ganhar a vida, evidente. E por qual dos dois motivos minha rainha varre as ruas, perguntou Ana Maria dos Anjos, se fazendo de desentendida. Pelos dois, evidente, respondeu Margarida II, rainha da Dinamarca, pondo fim a uma pergunta tão tola. Será que há algo de podre no reino da Dinamarca que justifique uma rainha varredora, pensou em perguntar Ana Maria dos Anjos, mas evidente que tal pergunta tola nem seria respondida pela monarca.
Margarida II, rainha da Dinamarca, gostava de falar “há que” e “evidente”, que era seu vocábulo predileto, conforme explicou a Ana Maria dos Anjos, há que nos comunicarmos de maneira digna e uniforme, continuou, os vocábulos são tudo, os pensamentos são nada, as ações não existem, e Deus tudo olha cofiando sua barbicha branca fininha como de um sábio mestre K´ung, Confúcio para os ignaros. Claro, claro, concordava Ana Maria dos Anjos de forma meio retardada, se sentindo uma.
Quando nos encontramos em estado de gravidez, sentenciou Margarida II, nossos cérebros femininos encolhem 8% de seu tamanho normal, mas nada com que devamos nos preocupar, pois que voltam ao normal seis meses após o parto... além disso, os cérebros femininos têm por volta de 10 a 20 milhões de neurônios a menos que os masculinos, mas nada com que devamos nos preocupar, pequena, já que há muito mais conexões axiônicas no cérebro feminino. Ou seja, foi interrompendo Ana Maria dos Anjos, isso significa que, ou seja, reatou Margarida II, interrompendo a interrupção, nada significa nada, posto que os vocábulos são nada, os pensamentos não existem e as ações são tudo, finalizando a conversa e recomeçando a varrer a rua na frente da casa desolada, sem ao menos agradecer pela caneca de água, afinal, vocábulos e pensamentos não são nada, e a ação de beber a água e encetar uma conversa deve ter se justificado por si só, pensou Ana Maria dos Anjos contemplando a rainha no seu ofício real e tentando entender de onde havia saído aquela conversa sobre gravidez, visto que a sua estava tão no início que não se dava para notar barriga nem nada.
Ah, sim, virou-se Margarida II antes de desaparecer na esquina, seu nariz está bem dilatado, criança, parecem asas de borboletas, mas nada com que devamos nos preocupar, já que crianças não nascem a contento nem florescem no epicentro de uma casa desolada uma torre em ruínas uma vida em escombros em um poço destampado. E continuou, muito solene, deus se alimenta de sucrilhos no café da manhã; nós somos os sucrilhinhos de deus, criança.

VI.
“Tudo o que sou não é mais do que abismo.”
(Fernando Pessoa)
“Tudo vai, tudo volta, eternamente gira a roda do ser.”
(Nietzsche)
Ana Maria dos Anjos entrou e voltou a caminhar pela casa devastada, andando pelo meio dos escombros; nem se preocupava em desvencilhar-se de nada, pois que tudo era apenas entulho, poeira, pedaços e resto do que nunca realmente havia sido, e não se pode reconstruir o que nunca foi.
Achou que tinha passado os anos de superfície alimentando os duendes com papas de aveia e mel, e que atraía as fadas, silfos e elfos com o som das flautas e bandolins, mas tudo que fizera foi assassiná-los, envenenando-os. Passara a vida matando ídolos e produzindo os fantasmas que agora, longe da luz do sol e de qualquer barulho, vinham assombrá-la, mas também lhe fazer companhia. Não havia mais o que esconder de si mesma, o que dissimular, ali no meio dos escombros, onde tudo era frio, escuridão e silêncio, só podendo saber-se a si mesma.
Meu Deus, recapitulou Ana Maria dos Anjos, eu já sabia disso tudo desde antes da adolescência, já sabia dos terremotos, da demolição, do nada, do totem, do frio e da escuridão. Como, então, consegui me manter à superfície, vivendo a farsa, durante todas essas décadas?
Foi então que Ana Maria dos Anjos notou mais uma carta caída no chão, bem à sua frente, enquanto sua cadelinha gania de mansinho e se enrodilhava aos seus pés, mas sem aquecê-los, que em terra desolada nem cães aquecem nossos pés. A Roda da Fortuna, viu Ana Maria dos Anjos quando pegou a carta, o destino virando e virando e virando, indo e voltando, voltando e indo, ao sabor do único deus que Ana Maria dos Anjos conhecia, o Acaso, num eterno arrastar de todos os seres viventes, pensou lembrando-se de Margarida II, rainha da Dinamarca, será que ao menos a monarca tinha sido?
Ana Maria dos Anjos aceitou, agora menos desconsolada, que nunca tinha sido, nem anjo nem nada, e que a superfície, o que considerara quente e barulhento e iluminado também era uma parte da terra arrasada. Deserto era tudo que havia no mundo, e ali teria de viver para sempre, sem retorno, sem redescobertas – já que não existiam descobertas, sem reconstrução – já que nada havia antes para que se pudesse reconstruir, sem redenção e sem esperança.
Por fim, Ana Maria dos Anjos compreendeu tudo.