Eu a chamei, ela olhou |
E s'eu te disser que falta uma parte de mim porque Pantera morreu? Você não vai acreditar. Crê ser impossível alguém ter este sentimento porque uma égua morreu.
Não é não. Deixa te contar. Eu tive uma vaca girolanda, chamada Marlene, que um dia, entre a vinda dela do pasto e o curral alguém enfiou uma faca na perna dela e ainda girou a lâmina. O sangue esguichava como se fosse um furo grande numa mangueira. Foi uma noite longa mas conseguimos estancar o sangue e ela ficou presa no curral por mais de dois meses. Ofereci capim para ela, legumes – as vacas adoram legumes, principalmente aipim – e jaca. Era tempo de jaca, lembro bem. Eu ficava com um terço de uma e ela devorava o resto.
Inverno. Onde morava, em Niterói, fazia frio intenso. Estava na varanda pegando o sol da tarde quando aparece Marlene. Ela subiu os dois degraus da varanda e chegou perto de mim.
Ela sempre foi enorme, mas assim, eu sentada ela de pé, parecia maior. Ela debruçou a cabeça no meu joelho como quem agradece . ficamos um bom tempo assim. Fazia carinho no vazio entre os chifres que não haviam e ela recebia agradecida. Por fim, levantou a cabeça deu uma lambida com a língua grossa no meu rosto, virou as costas e foi embora para o pasto. Era o primeiro dia dela.
Com Pantera mantive longas conversas , principalmente no final da tarde, antes dela ir para o pasto fazer a digestão do que comera o dia inteiro. Porque cavalo precisa comer o tempo todo. É comer e cagar. Eles não ruminam.
Durante o dia, a escovava e , por fim, à filha que nasceu; inventava capins diferentes, o que mais me apeteceria comer deveria ser bom para ela. Que tal, servir o capim picado com água e farelo de milho. Ela adorava. A ração granulada sempre é servida separada.
Hoje falta ela em mim. Tudo bem que ela já não estava cá em casa. Vivia em outros pastos para ser mais feliz, acreditei. Ao lado das filhas. Sim, ela nos deu quatro filhos. Uma delas, a Shamsse, ou Ventania, como a chamo desde recém-nascida, pois a considero parente do vento, está sendo preparada para a pista.
Eu olhava para Pantera e a sentia parte de mim, como sabia ser parte dela. Nunca fez uma ameaça, esta égua enorme de meia tonelada nunca olhou torto para ninguém, nunca temeu que se fizesse carinho nos filhos dela, sempre ofereceu o brilho de seus olhos, o pelo negro e o corpo elegante suportado por pernas exatas de mangalarga marchador. E bastaria um tranco de leve para derrubar o mundo.
Altiva, sem ser esnobe ou presunçosa, ela corria no meu sangue, cavalgava por minhas veias quando queria deitar em meu coração. Quantas vezes senti o feto pulsar dentro dela, e confundia seu batimento cardíaco com o do filho no ventre.
Ela morreu ontem. Com o filho ou filha dentro dela. Prendeu a cabeça entre duas tábuas da cerca e morreu enforcada.
Cavalo é muito frágil. Um sopro de vento pode quebrar uma vértebra.
Nunca a montei. Só o faria quando pudesse ser cavalgada por ela, ir com ela por prados com os quais os cavalos e as vacas e os bois e as éguas sempre sonham.
Hoje já posso montá-la porque ela cavalga o buraco que a falta dela cavou dentro de mim. Juntas iremos ver se horizonte termina nos olhos de ver ou se vai mais adiante, além da visão. Ela me disse que não há fim, certa vez, que a suposição de eternidade é real.
Acredito na Pantera; nunca me enganou. Na véspera da morte dela fui vê-la. Coisas de mal pressentimento. Aprendi com ela a sentir o cheiro do que vai acontecer.
E lá vamos nós, estamos numa longa cavalgada. Em alguns momento eu a monto, em outros ela monta neu. Aprendi com ela, também, que na dor, é melhor falar errado. Sempre dá certo.
Shamsse segue na frente, Alma, em seguida, e Pantera é a última. Carrega um filho na barriga. Já está pesada. Faltam poucas semanas para o nascimento. Égua tem gestação de 11 meses.
P.s.: Para Fal, Telinha, Cora, e demais amigos que aprenderam com a morte dos amigos o amar desdobrado.
Esther Lucio Bittencourt
elb