quarta-feira, 8 de maio de 2013

A CASA E O RIO



Nora Borges***




 

Vivi quase toda a minha vida no Poço da Panela, ao lado do belo rio Capibaribe. Nossa casa era o resultado de muitos anos de sonho de minha mãe. Ela jamais desistiu da idéia de possuir sua própria casa, apesar das grandes dificuldades que viveu. E não se surpreendeu quando por fim, um dia, meu pai chegou com um papel grande e amarelado e começou a desenhá-la. Era um bom e jovem arquiteto e havia comprado um terreno num beco sem nome e sem saí­da, no bairro de Casa Forte. O terreno estava muito próximo a um sí­tio de vegetação cerrada e árvores centenárias, por onde se podia ouvir os sinos de uma igreja pequena e branca ou os ruí­dos de um barco de madeira que fazia a travessia dos pobres para a outra margem do rio. Eram vozes abafadas, que escutávamos como se fossem de duendes e fadas. Entrávamos ali seguindo a velha Estrada Real do Poço, salpicada por casarões antigos cujos donos eram herdeiros da época em que tudo aquilo era um engenho de cana-de-açúcar. No meio da Estrada estava a antiga sede do engenho, mal assombrada e tenebrosa a qualquer hora do dia ou da noite. Do nosso lado, os pequenos caminhos, o mato. Muito mato e os braços largos do rio. Como se desenha um sonho? Não foi fácil. Do papel para as primeiras pedras dois anos se passaram. Um sonho não tem preço, mas as pedras têm. E eram muito caras para a realidade financeira da famí­lia, no iní­cio dos anos 60. Hoje sei que a vida com um sonho é sempre mais próspera. Minha mãe economizava até em palitos de fósforo, o que deixou uma marca em seu comportamento pelo resto de sua vida. Nunca jogava nada fora. Acendia um palito já usado na boca acesa do fogão e o guardava outra vez, até que não era mais possí­vel segurá-lo entre os dedos. Lavava, passava, varria, cozinhava. Usava um vestido até que se rasgasse… Mas finalmente, um dia, fomos ver a construção.Minha mãe e suas mudas de jasmins e roseiras. Meu pai e suas folhas de papel. Foi um domingo de festa para nós. Três crianças, quatro pedreiros e o grande sorriso de meus pais.Que mais era necessário? Ah, sim… uma panela grande de barro marrom e todos os ingredientes de uma feijoada. Trabalhamos todos naquele dia. Carregando areia, levantando muros, plantando, pulando de monte em monte de areia e barro. Escolhemos o lugar onde seriam plantadas as árvores que depois seriam minhas amigas por toda a vida. Abacateiros, coqueiros, jambeiros, goiabeiras. Esse foi o nosso programa por muitos domingos mais, tantos que perdi a conta. Quase quatro anos depois, a construção ainda era construção. Suas paredes já se revestiam de madeira escura, o piso de parquet negro e marfim, as flores já eram uma realidade… E faltavam só 4 meses para a grande inauguração. Passarí­amos o Natal de 65 na Casa. Meu pai comprou um piano.Assim, sem avisar… Chegou um final de tarde quase sem pisar no chão. Não era um piano negro e de cauda como o da casa de meu avô. Era pequeno e clarinho, mas era um PIANO! Comecei a estudar com uma professora que tocava na igreja da praça. Meu pai tocava todas as noites e eu bailava no terraço de cerâmica encerado, de meias soquetes para deslizar melhor. Nunca tive muito jeito para bailarina e caí­a cada vez que inventava rodar como elas. Mas era uma possí­vel-futura-pianista. Uma noite ele veio… o rio. Foi sua primeira incursão pelas ruas de Casa Forte. Invadiu quase todas as casas, manchou, molhou, enlameou tudo até a altura de meio metro. Na nossa ele foi mais cruel. Fez saltar todo o parquet do piso, entortou as tábuas de madeira do escritório… e levou o piano. Mas antes o fez bailar sobre a água… descolou cada tecla de marfim… arrepiou a madeira… enegreceu tudo. Acabou com meu sonho de artista, de famosa pianista… e eu já sabia que nunca seria uma bailarina. Meu pai chorou. E nunca mais falou do assunto. Creio que queria esquecer tamanha tragédia. Ou talvez seu silêncio dissesse que nunca a esqueceria… Ao final do ano nos mudamos para A Casa, que nunca, jamais deixou de ser uma obra em construção. Pois é. Por mais que meu pai fizesse planos e projetos de decoração e mobiliário e fosse, aos poucos, trocando pisos e portas, comprando luminárias e estofados novos, a briga entre ele e o rio foi ficando cada vez mais acirrada. E violenta. Por dez anos o Capibaribe, que lambia nosso muro nas épocas de verão e dava um toque de habitantes da selva às aventuras de criança, nas épocas de inverno ameaçava subir, inundava o jardim. E por quatro ou cinco vezes elevou-se, cada vez mais alto. Até que um dia cobriu A Casa deixando apenas o reservatório de água de fora, como um bote abandonado e fantasmagórico. A cada subida, meu pai o desafiava com novas estratégias de esconder seus tesouros : os livros e os discos. Subia-os às prateleiras mais altas da estante e até mesmo nos ocos do telhado do gabinete. Eram muitos os livros de meu pai. Uma biblioteca de teto ao chão de livros, dicionários e enciclopedias. Entre os mais amados, as obras completas de Shakespeare, Pessoa, Neruda, Bandeira, Eça de Queirós, Edgar Alan Poe. O melhor de Rubem Braga, Fernando Sabino, João Cabral, Guimarães Rosa, Machado de Assis, Rachel de Queiroz. Variava de coleções completas sobre arte em pintura e arquitetura a mitologia ou séries de fição cientí­fica e suspense policial… Era um cupim de livros, o meu pai. Os livros e a música eram suas paixões e ele costumava freqüentar livrarias e sebos semanalmente. Mas… na pressa de salvar a famí­lia de morrer afogada, eles perdiam em prioridade. Ficavam na casa, escondidos em alguma altura, onde meu pai, com esperança ainda não vencida, pensava que não seriam alcançados… Ledo engano. O rio gostava de ler… E sempre subia um pouco mais, até encontrá-los… Derretia as capas dos discos, cobria os sulcos com uma lama escorregadia. Dos livros só levava as letras… as frases… deixava o papel grudado e inchado como um cadáver… como um ato de pirraça, para a gente saber o que tinha perdido, para a gente saber que ele era maior. Ele vinha e se demorava lendo. Dias e dias… Nossa casa era a primeira atingida pelas suas ganas e a última a quem permitia voltar. Assim, quase não salvávamos nada do que ele deixava. A lama negra e gosmenta era grossa e fedorenta como petróleo e havia ficado por tempo demais. Entranhava em tudo… Então, ví­amos meu pai chorar, apanhando de pá e carro-de-mão, a papa de livros e discos que o rio, sem dó, espalhava pela casa inteira… Lavávamos os discos com água e sabão, nús de suas capas coloridas. Coleções inteiras de Bach e Beethoven, as suas óperas prediletas, os Jazz e os Blues, as Grandes Orquestras. Uma raiva impotente e uma tristeza profunda se instalavam na casa e em nossos corações. Alguns discos era possí­vel comprar outra vez, mas a maioria estava perdida para sempre. Eram selos esgotados, fora de catálogo. Ainda guardo uns livros sujos de lama seca, que o rio não lavou as frases. As poesias de Neruda, a solidão de Garcia Marquez, a pedra do reino de Ariano Suassuna… Talvez o rio já os tivesse lido das outras vezes e só lambeu as capas, não os abriu. Com um pouco de sol, deu para salvar. Na última batalha entre ele e meu pai, tivemos que viver por seis meses em um apartamento emprestado, pois foi exatamente nesta que ele descobriu o esconderijo do telhado. Derrubou o teto… e leu tudo. Só voltamos para casa no ano seguinte. E meu pai estava vencido. Não quis mais brigar… parou de sonhar. Morreu dois anos depois. Tinha 50 anos. Tentamos batizar com o seu nome o beco sem saí­da, mas ele não era suficientemente importante para lutar com outro morto: o pároco da pequena igreja branca. Alguns anos depois, construí­ram barreiras no rio e nosso antigo campo de batalha valorizou-se. Venderam lotes e lotes para novos habitantes do romântico bairro do Poço da Panela, que foi se transformando num rincão da nova elite da cidade. Casas modernas se espalharam por toda parte. E até edifí­cios, contrariando muitas leis de proteção ao meio ambiente e e manutençao do Patrimônio Histórico. O casarão mal assombrado é agora um museu, as ruas estão calçadas e diante de nosso antigo jardim há uma pequena praça triste e mal cuidada, árida e sem razão de ser. Três bancos de concreto, dois ou três arbustos que tentam sobreviver ao abandono… Não há mais cipós nem as árvores frondosas onde nos pendurávamos em nossas fantasias de reino das selvas. Enterraram as árvores até que morreram sufocadas. E a nossa casa também morreu… Não caiu, nem foi reformada. Está lá ainda, mas é só uma sombra esmaecida do que foi antes. Nem jasmins, nem roseiras… nem cheiro de mato verde… Metade do antigo jardim é cimentado. Nem cocos, nem goiabas, nem jambos, nem pitangas, nem araçás… Nem uma música no ar, nem o barulho dos sapos e grilos da beira do rio. Ele também não está mais lá, o rio… Mudaram o seu curso. E muitas casas estão construí­das onde antes eram seus braços. Também ele não tinha mais nada a perder.

Seu parceiro de briga não lhe comprava mais os livros… nem lhe fazia ouvir La Bohème às alturas, nas madrugadas enevoadas e úmidas do Poço… No beco, ainda sem saí­da, há agora um nome : o do padre da paróquia. E meu pai mudou-se, depois de morto, para a pequenina igreja branca. Lá, o rio ainda lambe as paredes de seus muros… Estão juntos de novo. E se pode sentir, mais que ouvir, entre as badaladas dos velhos sinos de bronze, suas queixas mútuas de amigos rabugentos… Antigos e eternos companheiros de lutas e sonhos.

**Soube agora, em 2011, que a casa foi derrubada e um edifício está lá, em seu lugar. Não fui ver.

***Publicado em outubro 16, 2004 por Nora Borges em Líbgua de Mariposa