Claudia Lopes Bório *
Era um sábado quente em Curitiba. Corri, com meu vestidinho jeans, bolsa atravessada, levando uma pashmina vermelha. Aqui a gente nunca sai sem agasalho, mesmo que faça 30 graus durante o dia: o clima muda muito rápido. Fui ao Guairinha, tradicional teatro (uma versão menor do Guairão, nosso monumental teatro central, fica aos fundos, na lateral deste). Encontrei lá meu amigo teatrólogo e excelente ator, Álvaro Bittencourt, e minha filha, que vinha do lado oposto da cidade.
No palco, uma cortina branca de fitas, uma iluminação muito linda, intensa, como se fosse o sol. Três móveis típicos da década de 60 e um cinzeiro. Abre-se a cortina aos fundos, é ela, de vestido vermelho, cigarro aceso na mão: Clarice! Era Beth Goulart, impecável. Sua semelhança com a escritora, impressionante. Perfeita!
Clarice conta que escreve, porque necessita. Nada a faz escrever, mas escreve desde menina, talvez por vocação, talvez porque é a coisa que faz com mais facilidade, talvez por solidão. Ela troca de vestido: é a Hora da Estrela! Conta como queria alcançar uma estrela no céu, ser mais. Troca novamente, veste uma manta por cima; tantas personagens se sucedem. De repente, um ruído forte, uma vibração começa no teatro, enquanto ela encena seu monólogo concentrada.
Minha filha me olha, consternada, e eu me lembro: no Guairão está acontecendo o show de Robert Plant!
Meu Deus, percebo, estamos assistindo o show de Robert Plant pelos fundos.
Enquanto isso, Clarice –Goulart conta como andava por Copacabana, num dia tão lindo, olhando as lojas, e sentiu um bem estar tão grande, mas tão grande, que se achou mãe: mãe do próprio Deus Criador. E foi andando assim, com a capa aberta às costas, pelo vento, em amplos passos, com elegantes saltos altos.
Ah, eu me lembrava da primeira vez que vi um filme do Led Zeppelin em que Robert Plant cantava, abraçado ao guitarrista, com a camisa aberta, a calça baixíssima na cintura, os cabelos longos e encaracolados, e a voz extremamente peculiar, aguda. Era belo. Apaixonei-me.
O disco deles que mais me marcou foi Physical Graffiti, em que uma capa muito bem feita retratava um velho edifício onde as janelinhas mostravam os integrantes da banda, as letras do nome e várias imagens meio sem conexão umas com as outras. Era maravilhoso. Ao visitar uma prima roqueira, eu me deitava no chão, fazendo tocar aquele disco bem alto, com as caixas de som ao meu redor, uma de cada lado, inundada de música. “Lie, lie, lie, in the light....”
Foi quando Clarice quase pisou numa ratazana. Em um segundo deixou de ser mãe de Deus! Foi tomada por um nojo horrível! O rato era ruivo, ainda por cima! Ela tinha pavor de ratos, ainda mais um morto, era como se quisesse se obrigar a tocá-lo, mas sabia que o nojo era indizível, vendo ali aquele animal deitado, com os pelos avermelhados.
E o que será que ele tocava então, talvez alguma das músicas daquele show em que havia a banda egípcia. Eu tentava adivinhar as melodias pelo som difuso que passava através do teatro e pensava em percorrer as coxias, fugir dos seguranças, entrar no show dele por trás. Esqueci por alguns momentos de Clarice. Mas eu queria ver Clarice também, eu queria ouvir Clarice! Então, prestava atenção em Clarice, que descera do ônibus à noite, no Jardim Botânico, perdendo-se entre folhas e cachoeiras. Mas o Robert Plant era o homem que disse que uma mulher estava comprando uma escada para o paraíso, achando que tudo o que reluz é ouro! O homem que invocava o ritual shamânico, pedindo que os quatro ventos o guiassem, e chamava Deus de “o grande rearranjador”. Como era lindo isso! Enquanto Clarice se perdia entre folhas, cascas, e águas.
Eu sabia que Robert Plant era simpático, após ler uma reportagem da BBC em que o jornalista contava que foi até ele, visitá-lo no campo inglês, e ele veio pessoalmente, de Land Rover, pegá-lo na estação de trem. Achei o máximo: imaginei-me jornalista, entrevistando o homem dos cachos loiros e daquela voz sensacional, que ele nunca poupou, tanto que chegou a perdê-la e ter que fazer uma cirurgia.
Mas Clarice, oh, Clarice foi aquela que nasceu para salvar a sua mãe, doente, mas não salvou: aquela filha de um judeu contador de histórias, no melhor estilo ídiche, que respondia as perguntas do entrevistador da maneira mais sincera e desconcertante possível. E ela não deixava de dizer que não tinha sotaque, mas sim a língua “presa”: que poderia ser operada, mas seria muito doloroso, e por isso ela não operava.
Robert Plant deixou o Led Zepellin e foi o fim dessa banda. Todos diziam que o cantor loiro estaria acabado sem o fabuloso som da guitarra de seu eterno parceiro, Jimmy Page. No entanto, ele saiu, fundou uma outra banda e criou um dos sucessos românticos mais melosos do universo, daqueles de pingar mel – Sea of Love – que muita gente não sabe que é cantada por esse roqueiro durão de ar selvagem, que ganhou mais uma pequena fortuna com essa música. E ele prosseguiu em diversos discos, alguns bons, outros nem tanto, mas nos últimos anos tem sido bastante feliz.
E assim Clarice nos contou de sua vida um tanto solitária, fazendo uma última oração para que quando chegasse a sua hora final não lhe faltasse, ao menos, uma mão humana. Minha filha e eu nos entreolhamos mais uma vez, emocionadas, um pouco eufóricas, com vontade chorar, sem fôlego: faltara-nos dinheiro para ir ao show de Plant, caríssimo. Mas sentíamos como se tivéssemos estado presentes, pelo menos um pouco presentes, na vibração, no ritmo profundo, que fizera tremer o velho teatro.
Farwell, Robert Plant. Até um dia.
*Claudia Lopes Borio é roqueira, decididamente, E escritora em Curitiba.