Por Claudia Lopes Borio
ilustração de Leila Pugnaloni
"A ave sai do ovo. O ovo é um mundo. Quem quer nascer tem de destruir um mundo." (Hermann Hesse)
Nesta nossa conversa vou analisar brevemente a escrita de Clarice na literatura infantil.
Alguns elementos encontrados nos livros infantis de Clarice também estão presentes nos livros para adultos. É comum a autora criar uma narradora que diz que não sabe escrever, e que pede desculpas por não conseguir começar a história. Ela trabalha isso de forma criativa, muito espontânea, e acaba “escrevendo distraidamente”, expressão que ela usou no livro Água Viva. Esse artifício, que foi chamado de “escrita natural”, foi entendido por muitos críticos como escrita automática ou espontânea, mas na verdade parece cuidadosamente pensado para se atingir um determinado efeito estilístico.
Clarice se utiliza muito de narradores que estão conscientes de sua relação com a linguagem e com toda a construção do texto. O leitor é confrontado de propósito com textos que escapam ao seu conhecimento usual sobre o mundo, tendo finais abertos em todas as narrativas. O espaço que Clarice cria em comunicação com as crianças é bastante diverso das narrativas convencionais, sem se restringir às delimitações tradicionais do gênero.
Os livros infantis de Clarice são quatro: A mulher que matou os peixes, A vida íntima de Laura, Quase de verdade e O mistério do coelho pensante. Há ainda a coletânea de lendas brasileiras “Como nasceram as estrelas”.
Quase de verdade narra uma viagem ao quintal de uma casa, onde uma árvore acaba se tornando uma tirana por inveja às galinhas. A narrativa é feita pelo cachorro Ulisses. Ulisses existiu de verdade, era um cão favorito de Clarice, existe até uma carta escrita por ela... para ele. Começa assim: “oh, doce mistério animal”... oh doce dor de não saber falar, e sim saber latir... “ Ulisses não era tão bonzinho assim. Uma vez ele mordeu o rosto dela. Dizem os que a conheciam, que ele fumava junto com ela, era famoso na época e chegou a aparecer no Pasquim. Alguns acham que esse nome seria uma homenagem ao misterioso analista que Clarice teve quando morava na Suíça. Ela passeava com ele com freqüência pelo Leme.
Mas nesse livro Quase Verdade, ela fica enrolando e de repente pergunta:
“Mas quando é que você vai começar com a história”??
Ulisses conta suas aventuras com latidos, que Clarice afirma entender. Ela é uma narradora que parece realmente tomar parte nas aventuras que conta, tornando o livro muito mais interessante e aberto para as crianças. Apesar do formato de fábula com que ela inicia a história (era uma vez...), logo se nota que o cachorro falante projeta uma narrativa muito mais engraçada do que o normal.
É muito interessante o uso que ela faz em um parágrafo inteiro de substantivos verbalizados, que não servem para dizer nada, senão que a vida continua:
“ os homens homenzavam, as mulheres mulherizavam, os meninos e meninas meninizavam, os ventos ventavam, a chuva chuvava, as galinhas galinhavam, os galos galavam, a figueira figueirava, os ovos ovavam. E assim por diante”.
Essa forma de utilizar expressões inusitadas é um recurso que mostra que Clarice segue a tradição iniciada por Monteiro Lobato, de não considerar as crianças leitoras bobas e passivas, e sim fazê-las entrar na brincadeira e dar-lhes a possibilidade de recriar o texto em suas falas ou escrita. Trata-se de uma forma extremamente inteligente e simpática de escrever, que torna o texto interessante e divertido inclusive para os adultos.
Mas ela sempre diz para não perdermos a paciência, pois a “história vai historijar” em breve.
A compreensão dos substantivos verbalizados (a figueira que figueirava) se faz com naturalidade, por associação, ou seja, é um artifício usado pela autora, criando um estranhamento com uma série de brincadeiras que vão se encadeando e atraindo a atenção para o texto e, mais importante, para a forma de escrever. Assim, enquanto a criança lê o texto de Clarice, aprende como se pode fazer, ou como se pode escrever, de forma original.
No melhor estilo clariceano, apresenta-nos um texto fragmentado com superposições de histórias. Tal estrutura não costuma até hoje ser comum nos livros destinados a crianças e requer um leitor atento, ciente das histórias que se formam. Nesse sentido, o leitor fica diante de duas narrativas: a primeira, subjetiva em que Ulisses se apresenta, fala de si, de sua dona, e a segunda apresenta um caráter moral.
Esta “moral” da história permite uma comparação com o famoso livro Revolução do bichos (1945) de George Orwell, quando observamos a similaridade da história com a exploração que a figueira submete as galinhas. A figueira, tal qual, o "Homem", não participa do processo de produção: "O Homem é a única criatura que consome sem produzir. Não dá leite, não põe ovos, ..."
Na obra “O mistério do coelho pensante” há um coelho, chamado Joãozinho, que pensa “mexendo bem depressa o nariz” , mas ele não pensa, ele “cheira’ as ideias. O leitor é convidado a também cheirar a ideia - aliás, Clarice sempre invoca os outros sentidos, convidando-nos a compartilhar o cheirinho ruim que as galinhas têm embaixo das asas, como se fosse um “cesto de roupa suja”. Mas a história do coelho também traz um mistério, como é que ele consegue fugir de uma gaiola com tampa pesada de ferro e voltar, explorando lugares cada vez mais longe, adivinhando com seu nariz que a Terra era redonda, e que as nuvens se mexiam no céu, formando grandes coelhos.
Essa aproximação entre o narrador e o leitor também mostra como a vida é cheia de experiências possíveis e interessantes, por mais singelas que sejam.
E ela termina a história convidando o leitor a experimentar por si mesmo, explicando ainda que sempre que ela franze o nariz fica com vontade de comer cenoura:
“Se você quiser adivinhar o mistério, Paulinho, experimente você mesmo franzir o nariz para ver se dá certo. É capaz de você descobrir a solução, porque menino e menina entendem mais de coelho do que pai e mãe. Quando você descobrir, você me conta. Eu é que não vou mais franzir meu nariz, porque já estou cansada, meu bem, de só comer cenoura. “
O pensar do coelho não passa de um exercício de imaginação, equivalendo ao modo como a criança assimila a realidade. A volta à gaiola é a volta à realidade, onde o coelho fica “preso”.
O final das histórias de Clarice não pretende resolver nada, mas manter um pouco de mistério em suspenso, para que a própria criança tente dar uma solução para o caso.
No livro A Mulher Que Matou os Peixes ela também surpreende, trazendo o leitor para bem perto:
“Vocês pensam que estou inventando? Mas, se eu jurar por Deus que tudo que contei
neste livro é verdade, vocês acreditam? Pois juro por Deus que tudo o que contei é a pura verdade e aconteceu mesmo.”
A insistência em afirmar a verdade do texto, mais do que fidelidade ao real, revela o desejo de encontro com uma outra espécie de verdade, desentranhada das palavras. Dessa forma, a narradora pode dizer que não engana seus leitores, pois é consciente de que ela fez um pacto, através da linguagem, de contar a verdade, e é esta que vai lhe proporcionar a salvação para o seu crime. Contar a história de vários bichos é uma maneira de dar existência às coisas, pois a escrita tem o poder gerador. Paradoxalmente, a escrita também é responsável pelo esquecimento fatal que leva à morte dos peixes, pois é ela a verdadeira causa do crime:
“Bem, chegou a hora de falar sobre o meu crime: matei dois peixinhos. Juro que não foi de propósito. Juro que não foi culpa minha. Se fosse eu dizia. Meu filho foi viajar por um mês e mandou -me tomar conta de dois peixinhos vermelhos dentro do aquário. Mas era tempo demais para deixarem os peixes comigo. Não é que eu não
seja de confiança. Mas é que sou muito ocupada, porque também escrevo histórias para gente grande. E assim como a mãe ou a empregada esquecem uma panela no fogo, e quando vão ver já se queimou toda a comida – eu estava também
ocupada escrevendo história. E simplesmente fiz um coisa parecida com deixar a comida queimar no fogo: esqueci de dar comida aos peixes!”
Ao final do relato a narradora encerra a história com a pergunta: “Vocês me perdoam? ”, o que pode estabelecer uma radical inversão de poderes: submete-se ao juízo infantil, circunstância inusitada na literatura infantil, tradicionalmente marcada pela tutela dos adultos.
Afinal, o que ela quer é um leitor que seja criativo, como ela mesma propõe:
— Está ouvindo agora mesmo um passarinho cantando? Se não está, faz-de-conta que está. (...) Para ajudar você a inventar a sua pequena cantiga, vou lhe dizer como ele canta. Canta assim: pirilim-pim-pim, pirilim-pim-pim, pirilim-pim-pim. Esse é um pássaro de alegria. (Quase de Verdade).
O uso dessas onomatopéias também prepara a imaginação para leituras mais difíceis. Veja-se que no livro “Perto do Coração Selvagem” ela também usa esse recurso no primeiro capítulo, intitulado “O Pai”:
"A máquina do papai batia tac-tac... tac-tac-tac...O relógio acordou em tin-dlen sem poeira. O silêncio arrastou-se zzzzzz. O guarda-roupa dizia o quê? Roupa-roupa-roupa."
Simulando uma sessão de contação de histórias, Clarice traz para a criança leitora um pouco da mágica da leitura e da imaginação.
Por fim, longe de esgotar todas as possibilidades de análise das obras infantis, o que se quis com este texto foi chamar a atenção para o que está por trás do discurso de Clarice, observando que tipo de leitor almeja e forma. A criança, assim como o jovem ou adulto, que ler Clarice, tem diante de si um universo de exploração cognitiva, lingüística, política e social, permitindo-lhe ser um sujeito criativo, reflexivo, crítico e, sobretudo, autônomo. Assim, a literatura de Clarice Lispector não só permite uma investigação artística quanto pedagógica.
No livro A Paixão Segundo GH ela também faz apelo à imaginação dos leitores:
Este livro é como um livro qualquer.
Mas eu ficaria contente se fosse lido apenas
por pessoas de alma já formada.
Aquelas que sabem que a aproximação,
do que quer que seja, se faz gradualmente
e penosamente — atravessando inclusive
o posto daquilo que se vai aproximar.
Aquelas pessoas que, só elas,
entenderão bem devagar que este livro
nada tira de ninguém.
A mim, por exemplo, o personagem G.H.
Foi dando pouco a pouco uma alegria difícil;
Mas chama-se alegria.