Em recente debate literário com amigas, uma delas destacou, no livro A SOCIEDADE LITERÁRIA E A TORTA DE CASCA DE BATATA, o trecho em que a protagonista se culpa por comprar roupas novas, sob o argumento de que a própria Rainha-Mãe, durante aqueles tempos duros do pós-II Guerra, não comprou um único vestido.
Uma outra amiga, tendo que ir a evento formal, dizia que não queria comprar roupa, que já as tinha em demasia, por que sempre temos que comprar mais? De fato, vasculhou armários, desentocou blusa linda e esquecida, combinou com saia, atualizou o conjunto com laçarote e foi pro casamento “linda como sempre”.
Hoje, com a velocidade da moda e o apelo por compras, não ficamos muito tempo com nossas roupas. Ou, se ficamos, elas acabam esquecidas em fundos de armários, substituídas por novidades. Acabamos não estabelecendo com elas qualquer relação de afeto e companheirismo.
Não vou dizer que consumismo é sempre absurdo. Essa prática moderna tem seu lado perverso, mas devo reconhecer que meu luxo é também o emprego do outro.
Conservar ou descartar roupas e outros objetos tem a ver com nossos próprios hábitos de acumulação, que diferem de pessoa pra pessoa. Eu às vezes me considero acumuladora. Olho dentro do armário e vejo roupas que não uso há mais de ano. Hoje, exatamente hoje, fiquei feliz da vida porque filha mais velha saiu daqui com um meu vestido que eu sempre soube que é lindo, mas que, por algum motivo, não me deixava confortável. Hoje ele encontrou seu destino.
Às vezes me considero descartadora, principalmente quando, depois de anos, vejo que a moda deu volta e aquela antiga carteira de couro azul ficaria linda com a saia nova.
Ao longo da minha vida, varias roupas, sapatos e acessórios tiveram tempo para construir comigo uma relação de amizade, que hoje é saudade.
Em cima da cômoda, no retrato envelhecido, estamos minha irmã imediatamente mais velha e eu, ela com cinco e eu com dois anos. Vejo a barra da saia toda bordada com galinha e pintinhos. Juro que não me lembro dessa roupa, mas tenho a sua memória construída por carinhosas e insistentes referências. Todas as vezes em que esse retrato saía da caixa, ainda na velha casa de minha mãe, alguém puxava o assunto para o detalhe da barra bordada. Alguém bordou ponto a ponto aquele vestidinho.
Muitas roupas estão vivas na memória, não só na memória suscitada por fotos, mas pelos outros sentidos. Ainda sinto o organdi arrematado com ponto ajour pinicando meu pescoço. Escuto o farfalhar do tafetá do meu vestido de formatura. Minha retina sabe exatamente o tom de amarelo do vestido rodado de cetim de algodão que dançou comigo em noites de encantamento ou de frustração. Sinto o cheiro da blusa de lã lavada com sabão em flocos LUX. Sinto o peso das anáguas engomadas, peso no corpo e na consciência, já que nunca era eu que as engomava, mas minha mãe.
Por exemplo, acho que foi precipitado descartar a jaquetinha azul-escuro, com duas fileiras de flores bordadas. Quando a filha adolescente a viu no retrato e se interessou por ela já era tarde.
Devia ser por antecipar o arrependimento que meu filho mais novo relutava tanto em se desfazer das roupas. Hoje, casado com mulher organizada e cuidadosa, tem que descartar suas camisas rasgadas e desbotadas. Mas, enquanto vivia conosco, conservava por anos seguidos roupas que já haviam perdido a decência há muito tempo. Gostou tanto de um determinado short que, sempre magro, o usou dos 12 aos 20 anos, até a peça literalmente virar frangalhos. Uma certa camiseta foi usada com um rasgo que partia do lado esquerdo na frente, dava a volta na cintura e se segurava por alguns centímetros antes de chegar na frente de novo.
Eu já devia suspeitar que ele seria assim quando, vestindo o menino pequeno, de seus três anos, argumentei que a camisa escolhida estava apertada, que deveríamos pegar outra, que aquela não servia mais, e ouvi: “Serve, sim, mãe, é só não respirar!”