segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

O mago Saramago

Por Dade Amorim




José Saramago. História do cerco de Lisboa. Rio de Janeiro: O Globo; São Paulo: Folha de São Paulo, 2003.

Ler um texto de José Saramago não é para qualquer um. Não que essa leitura exija um grau altíssimo de erudição, nada disso. Mas é preciso conhecer ao menos um pouco a construção da língua portuguesa em uso no país de origem do autor. É preciso acompanhar com atenção os meandros da história, às vezes um tanto tortuosos, porque de outro modo se corre o risco de não entender exatamente o alcance de certos trechos. É necessária alguma paciência, digamos assim, porque para um brasileiro acostumado à linguagem usada por aqui, há quem chegue à conclusão de que os textos de Saramago são maçantes. Isso tem acontecido com uma frequência bem maior do que seria de supor.
Talvez as diferenças entre o português de Portugal e o português do Brasil sejam suficientemente grandes para justificar um estranhamento de quem não se familiarizou com a literatura lusitana. Há termos, expressões e quase sempre um estilo diversificado entre os escritores dos dois países.
No entanto, José Saramago é um dos maiores autores portugueses de todos os tempos, levando-se em conta sua capacidade narrativa, as sutilezas de suas observações, a maneira sagaz com que trata a realidade e o raro domínio da língua portuguesa comprovado em seus livros, fatores que o levaram ao prêmio máximo da literatura universal, o Nobel, em 10 de dezembro de 1998. Muitas de suas obras, como o Memorial do convento, O ano da morte de Ricardo Reis, O evangelho segundo Jesus Cristo, A caverna, Ensaio sobre a cegueira, Todos os nomes e Viagem a Portugal, são trabalhos de grande fôlego, capazes de manter o leitor consciente preso e interessado até a última página.
Autor polêmico, externou opiniões sobre o catolicismo, religião predominante em sua terra, que escandalizaram muitos fieis, assim como seus pontos de vista sobre a luta internacional contra o terrorismo chegaram a lhe render acusações de anti-semitismo. Nada disso no entanto diminui o valor de Saramago como autor.
A primeira narrativa de História do cerco de Lisboa trata do trabalho de um revisor de provas, encarregado de corrigir um texto do mesmo nome, que quase cai na tentação de negar que os cruzados daquela época tenham ajudado o rei de Portugal a tirar a cidade do domínio muçulmano, o que alteraria por completo o sentido dado ao texto por seu autor original.
Numa segunda narrativa, simultânea à primeira, trata-se propriamente da tomada de Lisboa dos muçulmanos, quando o revisor, Raimundo Silva, põe os doze mil cruzados, “em que tínhamos depositado tantas das nossas esperanças”, afastando-se do lugar onde deveriam exercer sua atividade militar. Restam nesse caso apenas “outros tantos portugueses, em número insuficiente para cercar tudo numa frente contínua”, o que fortalece o poder dos mouros, e na verdade concede ao revisor ainda mais poder, já que seu trabalho concorre para alterar os fatos, criando em paralelo uma narrativa ficcional que utilizaria acontecimentos supostamente verdadeiros.
História do cerco de Lisboa é uma demonstração do virtuosismo e da criatividade com que esse mago chamado José Saramago era capaz de surpreender seus leitores, sem falar na perfeição com que descreve o mundo medieval, distinguindo-o, a seu modo original e perfeccionista, das características do islamismo e do cristianismo.