Vera Guimarães
Dezembro, clube, bar do tênis. De surpresa, chegam pessoas uniformizadas e vão se alinhando perto das mesas onde os atletas descansam das partidas do domingo. O maestro se posiciona, pede o tom a cada naipe e rege o grupo, que entoa conhecida canção, a nos evocar poéticos natais brancos.
Comovidos, pedimos outra, depois outra. E nos demos conta de que é Natal.
Aliás, nas lojas, na televisão e nas revistas já é Natal desde setembro, apelando às compras, ao consumo exagerado de tudo.
Na minha mais remota infância, década de 1940, o que se entendia por Natal era um período de festas, cerimônias, preparações, cantos, danças, confecção de presépios, tudo com forte conotação religiosa.
Para mim, o que mais caracterizava a época do Natal eram os presépios, alguns enormes, ocupando um ou vários cômodos de uma casa. Começava-se por preparar os panos, geralmente sacos de aniagem, embebidos em uma espécie de cola, provavelmente grude feito com farinha. Quando aquele tecido ficava duro, era pintado para simular terra e vegetação. Depois era moldado para formar estradas, morros, arruamentos, grutas, cidades, depressões para lagos e cursos d’água e quantos mais acidentes geográficos houvesse. Para fazer a vegetação, era plantado arroz que, ao brotar, dava a ideia perfeita de grama, ou capim, ou taboa. ... Lagos eram feitos de espelhos e lá nadavam patos e flutuava canoa com seu remador.
Algumas famílias faziam presépios memoráveis. E nós, verdadeira romaria para visitá-los. Em cada um deles nos maravilhávamos com as figuras, com as luzes, com as raridades, com as bizarrices. No mesmo espaço conviviam aviões, bonecos de celuloide, animais pré-históricos, cataventos, mobília de brinquedo, um anacrônico telefone, velocípede, vasilhinhas variadas, bijuterias brilhantes, galinhas, um violãozinho de madeira, cada objeto numa escala, proporção nenhuma entre eles.
No centro de tudo, as figuras natalinas: Maria, José, os pastores, a vaca, o burrinho, as ovelhas, galo e galinhas. Se fizéssemos nossa visita antes do dia 25, veríamos os três reis magos ainda a caminho, pelos morros e ruas, e a manjedoura ainda vazia. A cada dia, os reis magos se aproximavam um pouco mais da gruta. No dia de Natal eles já estavam em volta do Menino Jesus na manjedoura.
Há algum tempo, visitamos, amiga e eu, a magnífica exposição PRESÉPIOS DO MUNDO TODO, parte do Museu de Arte Sacra de São Paulo.
Voltando à memória da família, eram assim os Natais passados na nossa casa, na visão da minha sobrinha mais velha, filha da Zila:
Dos Natais guardo recordações especialíssimas: eram solenes e respeitavam todo um ritual de fé e alegria, que começava com a colocação de nossas listas de presentes desejados, nas portas dos tantos quartos do grande corredor central. Isso ainda em novembro, e era ótimo todos os dias verificar na lista o que estava riscado, num sinal de que já podíamos contar com o presente. No dia 24 de dezembro à tardinha, chegávamos ao “Castelo” e os preparativos da ceia e procissão que fazíamos à noite nos distraiam da expectativa da abertura dos presentes. A ceia era mais cedo, para liberar os adultos para a Missa do Galo e não atrapalhar o sono das crianças. Depois dela, era hora da solene procissão, carregada de simbologia: a manjedoura forrada de flores que nós íamos colocando, sinal de boas ações, durante o mês: o trigo, a uva, e o Menino Jesus sendo levado, à luz de velas, com a Princesa-Tia Verinha ao violão e todos nós cantando “Noite Feliz”. Uma breve oração e a entrega dos tantos presentes, que ocupavam os pés da árvore de Natal e se espalhavam pelo chão (naquela época, acho, ainda não haviam inventado a “recessão”!...). A euforia durava até o sono não mais permitir, e a gente dormia abraçados àquelas simples “maravilhas”. Tudo naquele Castelo-Reino era motivo para comemoração e louvor (...)
(in PROSA NA VARANDA, de Zila Guimarães Lanza)
"Mudaria o Natal ou mudei eu?", como se perguntou Machado de Assis.