terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

QUITANDA DA VIDA

Telinha Cavalcanti

Eu era menina, minha madrinha morava no sertão de Pernambuco. Chegava o meu aniversário e o presente que ela mandava era um dos mais especiais: um tijolo de doce de leite (tá, é uma barra, mas a gente chamava tijolo) e uma lata (das de leite ninho) de doce de leite cremoso.
Nunca comi um doce de leite tão bom quanto os da minha infância, e eu sei que hoje é difícil achar leite de verdade (não me chame leite de caixinha de leite de verdade, aquilo nem suja o copo)
E, como Esther mora na roça, onde tem leite bom para fazer doce, deixo esta receita aqui, suspirando de saudade.

Doce de leite caseiro




Ingredientes:
Dois litros de leite
Quatro xícaras de açúcar (750 g)

Como fazer

Em uma panela funda e grande, ponha o leite e o açúcar, em seguida leve ao fogo médio e mexa sempre com uma colher de pau por cerca de 15 minutos (até ferver). Abaixe o fogo e continue mexendo até que fique com a cor de marrom claro e com a consistência cremosa (aproximadamente 45 minutos). Depois passe o doce de leite para um refratário e deixe esfriar bem. Sirva com queijo de minas, com bolo, ou coma puro.

Receita: Navegando na Web
Imagem: Rebequinha Clemente

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

De imagens e palavras



Van Gogh. Café noturno.

O modo como as imagens têm sido tratadas em nosso mundo frenético é inadequado e irreverente, porque teima em ignorar a dignidade do que se vê. Não se sabe exatamente a quantas palavras equivale uma imagem. Ela pode ser uma fonte de palavras. Mas pode também suscitar apenas um silêncio contemplativo, uma reflexão muda.
Na linguagem do sonho as palavras se cristalizam em imagens, porque o caminho que elas percorrem é o da contramão da estimulação: em vez de afetar o neurônio e então ser percebida como imagem, a palavra vem do neurônio investido de volta à percepção. O sonho consiste de imagens e às vezes de palavras que são como recortes de uma colagem, fora do contexto regulamentar em que funcionam na linguagem. É frequente que um sonho apresente uma palavra – às vezes até uma frase – hermética, misteriosa, que figura ali como uma representação daquilo que a palavra pode querer dizer, ao invés de um termo no contexto usual da linguagem. A imagem verbal tem muito mais um caráter conotativo que denotativo no ambiente onírico. E o que ela significa pertence à esfera subjetiva de quem sonha. Mistura-se às imagens com um valor equivalente, é parte do enigma do sonho.
Se refletirmos nesse fenômeno, fica mais fácil perceber por que uma imagem nunca é a mesma para todos que a veem. Se isso é verdade, então como tratar as imagens como objetos fabricados em série? Palavra e imagem têm uma longa história de encontros e desencontros. Ambas estão ligadas à percepção visual e à memória. Ambas vêm impregnadas de sentidos e mensagens de variação infinita – que o diga Andy Warhol.
A criação literária é o momento privilegiado da palavra, quando se convocam imagens e estados subjetivos em função de uma criação única e intransferível, em tudo semelhante ao processo onírico. Não significa que o autor tenha a intenção de contar fatos autobiográficos, mas sim que a obra de criação é, como no sonho, autobiográfica, ainda que não seja confessional. O que se manifesta na obra de criação tem suas raízes firmemente cravadas na subjetividade. Há uma forma de sonho na obra de criação.
Palavra e imagem se fundem num texto que irá afetar de modos diferentes seus leitores. As pesquisas sobre o tema demonstram que a recepção individual do texto literário se dá em uma zona de condensação organizada por um inconsciente e sua subjetividade. Os elementos que contam para o indivíduo que lê vão além dos conceitos vigentes da cultura e dos preceitos de sua sociedade – embora esses fatores sejam de grande importância e quase sempre determinem o sucesso ou o fracasso de uma obra em termos objetivos. Uma pesquisa puramente conceitual, no entanto, não dá conta do literário, assim como somente uma pesquisa psicanalítica não o conseguiria.
A explicação disso se deve em parte à disjunção palavra-coisa. É como comer o fruto proibido: a palavra ingênua quer designar a coisa, e uma vez perdida a inocência e percebida a precariedade da identificação entre elas, descobre-se que a coisa não está onde a palavra a designara, que já não há redução possível de uma à outra. Descobrimos que fomos vitimados por uma série de separações, quando acontecimentos como perdas, mortes ou omissões se reduziam a palavras que deixavam escapar seu verdadeiro sentido. O passado não cabe nas palavras com que o evocamos porque não foi e não será como o recordamos ou falamos dele. Também não podem prometer nada para o futuro, porque será sempre fantasia tudo que disserem a esse respeito. As expressões se gastam ao ponto do lugar-comum: terra natal, terra prometida, o céu na terra e seus análogos só nos dão a certeza de que “uma coisa sem nome nos acompanha” que não é “nem nossa origem nem nosso futuro” e que por isso é “nosso horizonte permanente” e também a garantia única de alguma “tensão da palavra no momento”*.
Por sua vez, a imagem pode exibir acontecimentos em outra dimensão, mas a ilusão de seu poder também é um risco. Não vale mais nem menos que a palavra: é diferente. Os limites, os vazios, as imprecisões e a multiplicidade das palavras e da linguagem têm uma espécie de contrapartida na imagem. As palavras reduzem e atenuam o real que a imagem resgata. Mas é bom estar atento a um engano também nesse domínio. A imagem reproduzida e divulgada ao ponto que a vemos na propaganda e na mídia se destina a criar novas ilusões, porque a experiência que ela oferece não é a experiência do real. Enquanto representação do real, a imagem merece respeito. Rebaixada a vendedora de ilusões e propagadora da mentira, é uma fraude lamentável, que faz da ilusão uma razão de viver.
Como em tudo nesta vida, o real tem que ser a medida de todas as coisas.

domingo, 17 de fevereiro de 2013

SENHORA DO TEMPO - WOODSTOCK E ROMARIAS

Vera Guimarães

Minha neta de quase 17 anos se prepara para seu primeiro grande festival de música. Depois de vários meses de negociação quanto a dinheiro, desempenho escolar, companhias, onde ficar, passagens, finalmente ela exibe, feliz, os ingressos para o evento.



A mãe dela, minha filha mais velha, mais ou menos com essa idade, foi a um Rock in Rio. Dizem que a primeira edição do festival, em 1985, reuniu 1.500.000 pessoas.



Woodstock deve ter sido o primeiro megaevento de música, a partir do qual se implantou esse formato festivo, no qual se reúnem durante vários dias as grandes bandas, naquele caso, bandas de rock, e seus milhares de jovens fãs, adeptos, seguidores, aficionados, não sei exatamente que termo usar. Nos três dias que durou Woodstock, estiveram por lá 500.000 pessoas.

Antes disso, só mesmo a religião era capaz de reunir tanta gente. No mundo todo e desde tempos imemoriais, existem romarias, jubileus, celebrações diversas, cerimônias de adesão ou confirmação de adesão a determinado culto, fazeção e pagação de promessas.  A Meca, para honrar o Profeta, todos os homens devem ir pelo menos uma vez na vida. Anualmente, dois milhões de pessoas cumprem a obrigação, numa gigantesca procissão em torno da Kaaba. Lourdes e Fátima, na França e em Portugal, recebem milhões de romeiros o ano inteiro, em certos meses mais que nos outros.

Neste momento, está na minha frente recorte de jornal desta segunda semana de fevereiro de 2013, dizendo o seguinte: “Aproximadamente 30 milhões de peregrinos hindus - um recorde – mergulharam ontem nas águas sagradas do rio Ganges para celebrar o ritual de Kumbh Mela, a maior festividade religiosa do mundo, que acontece a cada 12 anos em Allahabad, no norte da Índia. (...) Ao longo de 55 dias – o festival começou em 14 de janeiro e termina em março – 100 milhões de hindus devem passar por Allahabad, cidade que tem 1,2 milhão de habitantes. ‘Entrar no rio pode mudar sua vida para sempre’, destacou Malti Devi, de 65 anos, que viajou de Londres para participar do ritual.” 100 milhões de pessoas?

No Brasil, as romarias a Aparecida do Norte, a Juazeiro do Norte e ao Círio de Nazaré devem ser as que reúnem maior número de pessoas. E em cada região do país, perto de cada cidade, existe com certeza um lugar sagrado para onde nos dirigirmos em busca de consolo, elevação da alma, resgate de promessa, louvação ou para um pedido desesperado. Mas não apenas. Romarias e jubileus são oportunidade de diversão, espairecimento, turismo, negócios, namoros.


Na minha infância, décadas de 1940/1950, no nosso mundo pequeno, eu ouvia falar em Congonhas do Norte, no Jubileu de São Geraldo, em Curvelo, na romaria a Congonhas do Campo. Nessa última, se construiu hospedaria para os romeiros, um conjunto impressionante para abrigar os peregrinos que vinham de longe. Demolida e reconstruída, hoje é um centro cultural. 

 imagem: IEPHAMG
  
Na nossa família, não éramos particularmente chegados a peregrinações. Nossas romarias eram mais a casas de parentes e amigos. Minha mãe, devota de São Geraldo, dava notícia do jubileu do santo em Curvelo MG. Eu não me lembro de ter estado lá. 

Uma amiga me conta de peregrinação que fazia para honrar Nossa Senhora da Abadia, em Goiás. A festa era esperada o ano inteiro. A família se deslocava em caminhonete, os adultos na boleia, as crianças, algum agregado da fazenda, os colchões, os mantimentos, as comidas prontas e as roupas na carroceria. No meio do caminho havia uma parada para refeição. Depois de um dia de viagem por estradas poeirentas e esburacadas, chegava-se ao destino: um descampado, onde havia apenas e unicamente uma capela. Durante uma semana aquele lugar se transformava e fervilhava de gente: padres, freiras, devotos, comerciantes, doentes, crianças. O lugar se enchia de barracas e tendas, tanto para comércio e refeições, quanto para hospedagem das famílias. Cumpria-se a devoção anual, divertia-se, as pessoas passeavam. E esperava-se com ansiedade a festa do ano seguinte.

Já meu Woodstock era a Serra de Santa Helena


segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Meus doces arcanjos





De um certo ponto de vista, o mundo pode ser dividido em pessoas que gostam de doce e as que não gostam. Fecho com as primeiras e não abro. Ainda sinto o gostinho dos bombons de chocolate e dos brigadeirões, meus fiéis companheiros de muitos anos, com overdoses na Páscoa e no aniversário. Outra lembrança indelével é o doce de batata-roxa que minha mãe fazia, o mais puro sabor do autêntico marrom glacê. E as “cocadas” de abóbora e de batata-doce da carrocinha da Suelene na esquina lá de casa, sem falar nas de coco mesmo, brancas e pretas, que me deram prazeres inefáveis. Os suspiros. E os bons-bocados de vovó? Os quindins, as tortas de nozes, damasco, as ameixas recheadas e as queijadinhas? As tortas de baba-de-moça com coco, meu Deus, geladas e desmanchando na boca. O rocambole de pão-de-ló com recheios maravilhosos da cozinheira de tia Anita. As musses, os pudins de leite condensado da sobremesa, as compotas feitas em casa.
Nem precisa mais: o bolo singelo, ainda morno, da hora do lanche, com ou sem uma caldazinha de chocolate cheirando por cima. O pudim de aipim de minha sogra, cremoso, leve mas consistente, que nunca enjoava porque era adoçado no ponto certo. As brevidades de mamãe, para comer com o café da manhã. Só de pensar engordo e triglicerizo até a alma.
Fui (e sou, só que não como mais, sniff) tão louca por doce, que na mais tenra infância, quando aprendi os nomes dos arcanjos Miguel, Rafael e Gabriel, associei a cada um deles uma substância daquelas de que a gente se lambuza, se não souber comer com bons modos. Pra mim, Miguel ficou ligado a mel. Talvez porque rima, sei lá. Gabriel está ligado em minha cabeça à calda grossa do doce de cajá-manga que minha avó paterna fazia como ninguém – que Deus a recompense com sua santa glória. Já o nome de Rafael ficou identificado com o melado do potinho que sempre figurava no armário da copa, e que meu primo, lá pelos dez anos, consumia com uma nuvem de farinha de mesa por cima.
Gosto dessas associações porque elas me trazem os sabores que agora não posso mais degustar sem culpa e prejuízo do corpo. Nesse caso, a memória vira arca do tesouro, porque é por ela que de novo posso experimentar tantos sabores, aromas, as cores e consistências que integram esse prazer tão exemplarmente castigado que é a gula.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

QUITANDA DA VIDA

Telinha Cavalcanti

Este verãozinho chuvoso pede um agrado à tarde...

BOLINHO DE CHUVA

Ingredientes

2 ovos
2 colheres de açúcar
1 xícara de chá de leite
Trigo para dar ponto
1 colher de sopa de fermento
Açúcar e canela

Como fazer

Misture todos os ingredientes até ficar uma massa não muito mole, nem tão dura.
Deixe aquecer uma panela com bastante óleo para que os bolinhos possam boiar.
Quando estiver bem quente comece a colocar colheradas da massa e abaixe o fogo para que o bolinho não fique cru por dentro.
Coloque os bolinhos sobre papel absorvente e depois se preferir passe-os no açúcar com canela.




Receita: Tudo Gostoso
Imagem: M de Mulher

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Yes, nós temos futebol







Melhor que não ter. Já pensou, a gente só pensando no perigo, no assalto, na violência, nas quadrilhas de bandidos – escondidos ou nem tanto – na politicalha que só dá vergonha, e nem uma paixãozinha como o futebol pra alegrar? Nem um motivo pra pular, buzinar, gritar de pura felicidade? Nem um motivo assim como esse pra enlouquecer, xingar com vontade – olha a catarse aí! – e depois vibrar com a vitória?

E se não houver vitória? Ora, ficam umas histórias boas pra contar, que daqui a um tempo vão ficar ainda melhores: coisas pra contar à geração que vem aí e não viu esses prodígios da seleção; coisas pra comentar na mesa do bar, razões pra conviver melhor com vizinhos chatos, parentes abusados, amigos espaçosos. Os passes errados, os chutes sem sorte, as defesas impossíveis – não é pouca coisa. E como acontecem!

domingo, 3 de fevereiro de 2013

SENHORA DO TEMPO: ASSOCIAÇÕES MENTAIS, TABELA PERIÓDICA E PALAVRAS CRUZADAS

Vera Guimarães

Certo dia, uma de minhas filhas chegou do colégio contando que, enquanto o professor discorria sobre gases nobres, o radônio isso, o hélio aquilo, o xenônio..., um colega ficava insistentemente com o braço levantado pedindo a palavra. Numa pausa, o menino despejou: “Professor, professor, eu tenho um primo que chama Hélio!”

Essa situação é o famoso palpite infeliz, o off-topic , o nada-a-ver,  o por-falar-nisso, o data venia. Eu, imatura aos 70 anos, incapaz de me conter, péssima ouvinte, intrometida e exibida, confesso que já protagonizei vários “Professor, professor, eu tenho um primo que chama Hélio!”, do que me envergonho e pelo que peço desculpas a quem foi indevidamente interrompido por minha ansiedade. Vamos mudar de assunto.

Entre meus irmãos, ninguém foi para o ramo das Ciências Exatas ou Biológicas. Então, de Química, só temos rudimentos. Só tínhamos. Hoje estamos íntimos da Tabela Periódica dos Elementos. E do hélio, naturalmente. Tudo por causa das Palavras Cruzadas, o jogo de tabuleiro. Desde que apareceu para nós, acho que final da década de 1950, ainda com o nome de Mexe-Mexe, o jogo de palavras cruzadas encontrou, na nossa casa, participantes entusiasmados.



Uma de minhas irmãs e um amigo da família, ambos inteligentes, estudiosos e competitivos, disputavam animadas partidas em que nós, os outros, éramos apenas coadjuvantes. Eles eram imbatíveis. Mas entrávamos no jogo assim mesmo. Minha mãe, por exemplo. Cansada de tentar inutilmente aliciar algum dos filhos para o truco, de que era aficionada, ela acabou aderindo às palavras cruzadas. Embora de poucas letras, era dotada de enorme percepção e fazia frente às filhas letradas. Na sua última semana de vida, recuperando-se de uma intervenção cirúrgica na minha casa, ganhou de nós. Danadinha essa D. Didi!

Naquela época, o jogo que havia lá em casa era esse da ilustração acima e ríamos bastante da imagem da caixa, principalmente da cara de concentração do menino, sem saber que aquela era a nossa cara ao jogarmos. Hoje em dia, nas minhas idas a Minas, minhas irmãs e eu jogamos até cansar. Quando encontro minha filha mais velha, também saem faíscas na competição. Da última vez ela levou a melhor.

 imagem: arquivo pessoal

No jogo, a pior hora é quando se aproxima o final, a hora do “ninguém-larga-o-osso”, quando já não dispomos de espaço, nem que tenhamos boas letras. É aí que apelamos para a Tabela Periódica. Assim como já usei o π (Pi, aquele 3,1416) para confeccionar uma cartola num carnaval, a Tabela Periódica também está servindo para alguma coisa na vida de pessoas cujas atividades normais prescindiriam dela.

Pois bem, quando nos restam poucas chances de formar uma palavra, que tal usar Zn (zinco, pois!) na horizontal, e ze (o nome da letra -z-) na vertical, de preferência o Z no tríplice valor da letra? Ou Pb (chumbo) e Sb (antimônio)? Ou He (o nosso hélio, vejam que belezinha!), na horizontal, e há, do verbo haver, na vertical.

Agora a Tabela Periódica é essencial para nós. Tanto quanto para os nerds do seriado The Big Bang Theory, o físico quântico Sheldon, o físico experimental Leonard, a astrofísico Raj e o engenheiro Howard.  Já reparou que a cortina do banheiro dos dois primeiros é estampada com a Tabela Periódica?


Imagens:

Jogo Caça-Palavra: Mercado Livre
Cortina de Chuveiro com Tabela Periódica: Coolt Blog

sábado, 2 de fevereiro de 2013

84 CHARING CROSS - A UVA. O ÁLCOOL.

Elaine Pereira



Como era noite de folga, depois de dia cansativo de trabalho braçal de mudança, e ninguém ia pra lugar nenhum, portanto não havia automóveis a serem conduzidos e nem menores presentes a quem dar mau exemplo,como se eles precisassem disso, fomos comprar vinho.

A variedade sempre me fascina e eu não entendo praticamente nada, só o básico de qual uva é como e só sei do que gosto. Consigo captar algumas nuances, mas é só. Ainda bem que existe a figura tão fundamental quanto, digamos, a secretária do lar, o moço do computador, e o indefectível faz tudo, do sommelier. Esse era tão jovem que me perguntei como ele poderia saber de alguma coisa. E bem feito pra mim, porque o moço sabia tudo.

Vinhos recomendados, expectativa de uma noite agradável, quando já de saída, me deparo com o que momentos depois foi um ovo de Colombo na minha vida. No meio dos tradicionais teor alcoólico x e y, lá estava o “vinho sem álcool”. Ahn? Como assim? Vinho sem álcool é o que? Suco de uva? Não, não é, a minha monumental ignorância ficou óbvia e ele me contou o que é vinho sem álcool. Se mais alguém além de mim no mundo não sabia, é assim: originalmente o vinho é normal (se é que essa palavra pode ser aplicada a vinhos), com álcool. Daí ele passa por um processo de aquecimento até que o álcool simplesmente evapore. E mais: a AVÓ do moço fazia isso em casa. Siiiiiiiiiim, a Oma, porque ele era alemão dos pés aos olhos azuis, não podia beber álcool, mas não dispensava o vinho, então fazia o processo na panela mesmo. E ele me garantiu que o sabor permanece de vinho, não vira suco de uva não. Eu não tive vontade de experimentar, e depois descobri porquê.

Aí entra a elucubração. Vinho sem álcool é vinho sem spirits. Spirits em inglês vale para álcool e para espírito também. Um vinho sem álcool é um vinho sem espírito, assim como uma vida sem determinadas coisas é uma vida sem alma. É lindo quem não pode ingerir álcool poder sentir o prazer do vinho. Mas é um prazer manco, o espírito não presente não dá o mesmo efeito. Aqui não vai nenhuma apologia ao álcool, tudo o que é moderado e responsável só traz prazer – mas tirem a gordura do leite, o açúcar do refrigerante, o sal do xampu, mas por favor – o álcool do vinho não.

A vida é curta demais para viver determinadas coisas pela metade. Se é para tentar, é pra se jogar. Se é pra sofrer, tem que ser um drama de jorrar lágrimas. Se é pra ficar feliz, é pra soltar fogos de artifício, não dá pra sentir a temperatura da piscina pondo o pezinho, como diz minha amiga Fal – tem que mergulhar de cabeça. Se é pra tomar vinho sem álcool, que se tome suco de uva. Se é pra tomar vinho que se deixe nele o espírito, dos deuses, Baco gargalhando ao fundo.