quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

A ARMADILHA DO SENHOR P

Claudia Lopes Borio

Eu sou daquelas pessoas que nunca ganham sorteio, rifa, loteria, nada.  Nunca. Nem bingo, nem raspadinha. Quando acho uma pulseira de ouro no chão, é falsa.  Mas enfim, outro dia almocei num lugar diferente e tinha um formulário para preencher, concorrendo a um brinde, e lembrei-me da minha mãe, que sempre ganha: ganhou um aparelho de som num concurso dos Chicletes Adams, ganhou uma bolsa Vitor Hugo numa rifa, sonhou com jacaré, jogou no bicho, ganhou quinhentos reais. Enfim, ela diz: se você não jogar, nunca vai ganhar. Então preenchi o dito formulário e coloquei na urna. Um certo tempo depois, recebo um telefonema persuasivo (eu já devia ter começado a desconfiar): a senhora foi premiada na promoção dos hotéis P., por favor passe aqui tal dia, tal hora, para receber suas cortesias e brindes.

No dia marcado, estava morrendo de preguiça, com um começo de gripe que me deixou meio derrubada, novamente me liga uma moça super educada para confirmar o horário marcado e dizer que o estacionamento era grátis. Começava a ficar irresistível o negócio. Lá fui eu para o chiquérrimo hotel P., com minha saia de listinhas, um lenço dentro da bolsa. A recepção era gélida, devia estar fazendo uns 10 graus, enquanto o clima reinante em Curitiba era de uns 30 graus, o choque quase faz trincar minhas obturações. Que horror, minha gripe piorando a cada segundo, sentei-me para esperar a recepcionista, o consultor, sei lá mais o que. Daí aparece a recepcionista, me faz mais umas perguntinhas para confirmar se eu sou eu e diz que terei que assistir a uma breve apresentação para ganhar meu brinde, tudo bem? A essas alturas faço qualquer coisa para sair daquela sala gelada e concordo.

Vem outra mocinha, toda educada, e me leva por uma escada vazada, de metal, que eu detesto, para uma sala onde começa a me mostrar fotos de revistas sobre os hotéis P., como se eu sofresse de algum retardo mental ou se fosse um teste de Roschach para ver se eu queria viajar. Ela segura a revista de um jeito muito engraçado, como se eu fosse uma criança, e vai virando as páginas sem olhar. Aquilo já começa a me dar nos nervos.  Ela pergunta sobre minhas viagens e se surpreende ao ouvir aonde eu já fui – será que tenho cara de jacu, meu Deus. Aí pergunta onde eu gostaria de ir, lasco uns destinos esquisitos – Vietnã, o Butão, a Ilha da Páscoa. Pergunta se eu tenho namorado e para onde ele gostaria de ir, bom, imagino que a vila de Arraiolos em Portugal, a cidade de Hamelin na Alemanha, ou talvez Carcassonne, na França. E a sua filha, ah você tem uma filha... bom, ela quer ir para Liverpool, para Cartagena, para São Francisco da Califórnia.

A moça prossegue, impávida, me mostrando todos os hotéis do grupo P. no Brasil. Confesso que fico fascinada com as páginas da revista que ela vai virando de ponta-cabeça para eu olhar, e com o repartido do seu cabelo, que é atravessado, e o cabelo muito liso, como se fosse uma noz que vai se partir no lugar errado se apertarmos com um alicate. Se ela soubesse como detesto hotéis e como não tenho a menor vontade de ir para nenhum desses lugares!  O hotel de Natal, então, me dá vontade de vomitar, parece um tijolo cravado sobre uma montanha de terra em forma de pirâmide achatada. Eca!
Acontece que senhor P. me oferece, veja só que privilégio, a oportunidade de comprar um pacotão de viagens que vai me permitir usar todos esses hotéis!!! Veja que maravilha, que êxtase, que bênção, são apartamentos para até quatro pessoas (hã?) e tem em todos os lugares do mundo - bom, não tem no Vietnã, nem na Ilha da Páscoa, mas tem na vila de Arraiolos, veja só!! Puxa, que azar, penso. Ah, entendi, é uma espécie de lavagem cerebral, reunião de tupperware hoteleira, Herbalife do mundo das viagens. Lembro-me daqueles produtos de limpeza, como era mesmo, Amway. Aha. Mas que coisa de pobre, tenho vontade de dizer a ela. Mas nem café da manhã tem? Começo a fazer uma continha mental e vejo que o fantástico pacote não é assim tão vantajoso.

Ah, meu deus, porque é que eu fui falar em Arraiolos, penso, procurando Hamelin no mapa da Europa que ela me mostra de ponta-cabeça, folheando furiosamente a revista. E digo a ela que, sinceramente, não penso em comprar o tal pacote.

Mas por quê??? Ela pergunta tão aflita.

Ora, por que não gosto, respondo.

Entra uma gerente para confirmar se está tudo bem, com cara de vampira, grandes olhos ávidos, pulseira tilintante de ouros e um anel imenso que me lembra uma palmatória. Ela também me mostra a revista de ponta-cabeça e faz contas numa calculadora também de ponta-cabeça, que impressionante isso! Será que elas treinaram no  Cirque du Soleil?  Compre o pacote tupperware, fique sócia do senhor P. e faça amigos para sempre!! Este programa sensacional dura por quinze anos, a senhora já pensou nisso, diz ela agressivamente.

E se o senhor P. for à falência enquanto isso, já que ele usa o dinheiro tupperware dos viajantes para comprar mais hotéis, eu faço o que com as minhas milhas, bônus, cupons, seja lá o que for, pergunto?
Hahaha, ela ri, com dentes de vampiro, mas isso não vai acontecer, o senhor P. é sólido. Não sei, não li os relatórios financeiros do grupo, mas isso me parece um pouco com aquelas histórias de criar avestruz ou de investir em gado, digo a ela.

Mas ora, então eu posso lhe oferecer mais vantagens, mais descontos, menor preço. Menor preço? Mas custa quase o mesmo que um apartamento à beira mar em Florianópolis, que eu posso comprar à vista e alugar por R$ 10.000,00 por dia na alta temporada, minha senhora. Eu também sei fazer conta.

A mulher começa a suar e me oferece então o máximo da mordomia, eu parcelo em trinta vezes! Ah, tristes brasileiros que acham que a dívida parcelada vai desaparecer. A essas alturas eu já estou me sentindo como uma pessoa que foi enviada pelo senhor P.  para testar o poder de persuasão das moças. O repartido torto da primeira mocinha, cujo pai queria que ela fizesse direito e não turismo, já está totalmente descabelado. Bem sabia o pai dela: isso se chama “vendas”,  e não turismo, minha filha.

E a outra está com os dentes cada vez mais arreganhados, daqui a pouco vai pular por cima da mesa e me bater com a grossa revista dos destinos internacionais, toda colorida em papel brilhante, inconformada pois eu não quero comprar os tupperwares do mundo das viagens, não quero ir para Ilha da Madeira nem para Miami, oh céus!! E como é que a senhora vai me oferecer um pacote, se não tem hotel na Ilha da Páscoa, nem no Butão? Mas então, eu lhe dou café da manhã de graça! Mas que droga, não tinha café da manhã? Ufa, ainda bem que eu não comprei.

A gerente, desconcertada, pergunta, afinal, como é que eu faço para viajar, quando quero?

Pago à vista, minha senhora, respondo do alto de meus sapatinhos da Side Walk, pego minha revista colorida, meu vale dois dias e uma noite em um hotel da rede P., sem café da manhã,  brinde mixuruca que eu acabei ganhando,  e vou embora absolutamente exausta e sem a menor vontade de nunca mais ouvir falar do senhor P.

Ao sair da garagem, folhas voam, em redemoinho perfeito. Um saci pererê que está rindo da minha cara.


Claudia Lopes Borio é escritora em Curitiba. Quando viaja fica hospedada em casa de amigos.