terça-feira, 27 de agosto de 2013

Igreja da Candelária, RJ




Falar das belezas naturais do Rio de Janeiro tornou-se repetitivo.  Uma delas é a igreja da Candelária, bela construção que merece ser vista. Outras igrejas, como a da Glória e tantas outras merecem também uma visita.
Mas o Rio tem muito mais que lindas paisagens, floresta, parques e praias deslumbrantes. Alguns podem acrescentar "tem também favelas, violência, comércio ilegal e traficantes" – que hoje andam sumidos, presos ou temerosos de se expor, diante da boa política de segurança que ora alivia nossos temores.
Mas além da natureza abençoada e de uma arquitetura digna de admiração, existem no Rio bons programas de lazer e cultura para atender a todos os gostos.
 Sugestões para quem pretende visitar o Rio em 2011:
 ·                    Na Praça XV de novembro estão o Paço Imperial, linda construção colonial que funciona hoje como um centro cultural com cinema, restaurantes, exposições temporárias e manifestações musicais; o Convento dos Carmelitas, o Arco do Telles – onde na casa 13 morou Carmem Miranda e onde acontecem happy-hours memoráveis, nos bons bares e restaurantes locais – e a Travessa do Mercado, todos eles parte importante da memória do Brasil. Ali começou a história do Rio.  Seus bares, restaurantes, feiras, museus e intensa movimentação popular são atrações para muita gente que trabalha no centro da cidade e também para quem vem de mais longe curtir algumas horas de lazer.
·                    No Centro Cultural do Banco do Brasil, prédio de 1906, estilo neoclássico, que foi sede do Banco do Brasil até 1986, há um polo cultural com excelentes mostras de pintura, fotografia, um acervo permanente e algumas exposições temáticas sempre bem cuidadas. Promove debates sobre assuntos variados, sessões literárias etc. Salas de cinema e vídeo, teatros, shows de música frequentes no foyer. Há também uma casa de chá e um restaurante refinado. Biblioteca de 140 mil exemplares.
·                    Vizinha ao CCBB, na Visconde de Itaboraí n. 78, a Casa França-Brasil tem sempre mostras de arte, um cinema que funciona de terça a domingo e um bom bistrô, além da própria construção que vale a pena conhecer. Também pode ser encontrado lá farto material de pesquisa sobre temas ligados à douce France.
·                    Logo atrás do CCBB e da Casa França-Brasil, vale a pena explorar as ruas estreitas que datam dos séculos XVIII e XIX, onde a gente encontra fácil um bom restaurante instalado num casarão de pé-direito quase a perder de vista e bons lugares para um chope e um papo de fim de tarde.
·                    Na Marechal Floriano 168, o Centro Cultural Light tem sempre atrações interessantes, shows e exposições, e é em si mesmo outro exemplo da arquitetura neoclássica que predominou no Rio antigo.
 Outros pontos da vida cultural merecem atenção: a Biblioteca Nacional, com programações atraentes e a Academia Brasileira de Letras, que oferece palestras e cursos.

HELLO, DOLLY! QUERERES POSSÍVEIS




Dorothy Coutinho


Achar que a inscrição “querer é poder” é possível, me levou a sonhar, sonhar, mas me tornei apenas a pessoa que podia ser. Se tudo dependesse do “querer” como parecia nas minhas ilusões de menina, eu teria passado boa parte do meu tempo olhando pela janela, não para ver as árvores ou as nuvens como fico hoje, mas bocejando na prisão da busca pela excessiva coerência.

Queria ser uma daquelas princesas dos contos de fadas, lindas, com seus namorados guerreiros fantásticos, todos morando em castelos encantados.
Mas, li anos depois em algum livro que as jovens medievais ficavam muito cedo desdentadas, os guerreiros morriam ainda adolescentes de doenças ou na guerra, que não se tomava banho, e que as donzelas faziam xixi em pé. Para isso, bastava levantar um pouco as longas saias.

Queria me tornar uma mulher adulta segura de mim, sem carência afetiva, dona do meu nariz, linda, rica e poderosa. Me via deitada num sofá, comendo chocolates, com dúzias de servas, mucamas e lindos e formosos eunucos para me atender.
Na contrapartida do “querer” da inscrição, vivi isto sim, a história do trabalho, dos horários, dos compromissos, das contas para pagar, das doenças, dos fracassos, das frustrações, o escambau!

Mesmo nessa perseguição dos meus “quereres” não precisei me encolher, mentir, nem me afastar para me deixar matar.
Na tentativa de ser boa mãe não precisei ser a mãe-mártir para despertar culpa ou causar aflição.
Para ter bons amigos não precisei fingir, vigiar nem agradar o tempo todo.
Para ser boa amante não precisei me anular, afinal carinho não é servilismo.
Para ser inteira não precisei erguer barreiras à minha volta.
Para me tornar mais humana não precisei exigir de mim o que é próprio dos deuses.

E para continuar vivendo bem, eventualmente penso e vislumbro a morte, não como um susto, mas, como um estímulo ao “querer” o melhor no fim.

A inscrição acerta quando eu penso que se não posso corrigir os males do mundo, eu posso “querer” não colaborar para que ele se torne mais violento, mais mesquinho e mais cruel.

Aí, sim, o “querer é poder”.



segunda-feira, 12 de agosto de 2013

O CINE METRO


Dade Amorim





Às vezes as coisas podem acabar bem. Experiência própria. Tinha um medo supersticioso de confessar isso. Quebrei o tabu, desmanchei a crendice e abri o jogo num fim de sábado em maio. Mês dos finais felizes.
Mamãe ia comigo ao cinema. Andávamos de casa até a praça Saenz Peña, não era longe, dez a quinze minutos a pé. O hall de entrada do cine Metro era gelado, chegava um frio delicioso lá de dentro. Naquele tempo não fazia o frio que faz hoje no Rio. O lugar pedia drops de hortelã, o verde, redondo, de embalagem também verde com as pontas prateadas. Só depois apareceu o quadradinho, embrulhado um a um.
Era o bom começo. O cheiro de ambiente fechado se espalhava como uma surpresa pela sala de espera. Havia tapetes vermelhos nas escadas que levavam à sala de projeção, passadeiras presas por tubos de metal bem dourado. Era luxuosa, a sala, art-déco meio art-nouveau, balcão de balas à direita dos que entravam pela roleta geladinha. E lá dentro as poltronas macias, fria escuridão que lhes escondia a cor, talvez vermelha. Não sei bem por que a lembrança do Metro Tijuca me vem cheia de toques vermelhos, agradáveis ao tato e com esse inseparável sabor de hortelã.
O mais importante surgiria logo depois do jornal, colorido, irretocavelmente glamoroso, um mundo fácil e leve, ritmado, cintilante, fantasioso, onde tudo vinha pronto e em harmonia. E sempre, sempre dava tudo certo. A filosofia era a mesma dos números de show. Afinação, ritmo perfeito, rostos perfeitos até na possível feiúra. Tons e texturas, caras e bocas. Como igualar o brilho dos cabelos, o talhe quase etéreo, o torneado das pernas, o afago das vozes – hoje eu sei – melosas demais? Os lábios, o azul de certos olhos, os dentes? Gestos como golpes de asas, pernas sem peso.
As atrizes de musicais foram na certa as primeiras pernas a conseguir fama internacional. As primeiras estrelas mundialmente famosas. Os musicais da Metro ocuparam por muito tempo o lugar que hoje ocupa a novela das oito. Ou talvez a novela mexicana das caras de boneca-de-porcelana, dos galãs sem jaça que não poderiam ser outra coisa senão galãs, além, é claro, de cantarem tão bem. Ou então apareciam Fred Astaire, Gene Kelly, aqueles caras que dançavam com a gente.
Um mundo assumido de fantasia e ilusão sem limites. Dourado sobre azul a imaginação ouriçada, os olhos fartos de surpresas que iam do sublime ao kitsch com extremo prazer, como era bom. E tudo sempre dava certo. As imitações de gente daqueles filmes sofriam, duvidavam, mentiam, amavam e eram às vezes mais pastiches que paródias, absurdos contos simplórios que apenas abriam espaço para as doces visões e os números incríveis dos shows inocentes de Hollywood, dos números ainda ingênuos até para pintar alguma forma de malícia ou erotismo.
Alienações e críticas de pessoas tidas como doutas, quanto à intenção do que se mostrava nos musicais: propaganda imperialista, mentira, tudo mentira, futilidade e vanglória, alegria postiça e sem conteúdo. Leviandade, oportunidade aberta à moral tolerante, proclamavam os religiosos de nariz torcido. Situações tênues e irreais do roteiro, mesmo assim, ofereciam material aos reparos dos censores de plantão, naquele tempo mais numerosos e respeitados que agora. Sempre uns chatos, porém.
Mas havia uma forma artificial de perfeição naqueles espetáculos que conseguia remi-los de todas as falhas que se alegassem. Mesmo porque, ninguém que percebesse alguma coisa poderia levar a sério neles mais que o espetáculo em si, o show, a música, a dança e os cenários deslumbrantes, a técnica perfeita, os figurinos e a sincronia perfeita dos pares, os arranjos adequados ao romantismo das situações. Qualquer carrancismo ou seriedade da trama teria feito daqueles filmes dramalhões insuportáveis ou óperas falidas. Fazia parte da especificidade de sua forma mimética que fossem frágeis as cenas e as circunstâncias, de uma linha de ação própria para fazer sobressair a trilha sonora e os números de dança, e só. Apenas dava certo, tudo tinha que dar certo, porque o segredo da eficácia da obra como um todo era dar certo. Não era um folhetim, embora às vezes parecesse, assim de leve. Era talvez uma forma sutil de marketing, não agressivo como os de agora, num tempo em que a televisão apenas se tornava conhecida de uns poucos e o cinema era a grande oportunidade de deslumbramento das almas simples de moçoilas em flor.
Havia uma forma superficial de perfeição, em parte graças à técnica, que dava suporte ao vazio e ao brilho. Mas havia acima de tudo a filosofia fresca e sem dobras, a ludicidade dos ritmos sincronizados, sapateados, estilizados; das pernas gêmeas e sensíveis, belas ou miraculosas; dos corpos expressivos, quando ainda não se falava em expressão corporal; das imagens clean, coloridas, certas, bem combinadas. Um conjunto de gestos precisos, estereótipos teatrais sem culpa e até uma sensibilidade que às vezes acertava em cheio pelo encanto da representação encenada, na música perfeita para sustentar as sensações do momento e as saias que deviam esvoaçar reciprocamente, complemento visual e auditivo de paz, tramando gaiatamente um final feliz que a ninguém poderia incomodar, uma vez que o tema era sempre a harmonia. Só insensíveis não veriam isso e não se deixariam embevecer naquelas duas horas de impossibilidades deliciosas.
Dane-se a impossibilidade. Tudo pode sempre dar certo. Era essencial internalizar a mensagem tantas vezes e de tantas lindas formas repetida. Naquele tempo não seria justo não crer no impossível.

domingo, 11 de agosto de 2013

QUANDO MINHA MÃE CANTAVA COM MEU PAI

Esther Lucio Bitterncourt




Pedro e Marina, meu sobrinho e sobrinha neta


Quando minha mãe Sara cantava o mundo estacionava para ouvir. Em seguida, meu pai Tonio, com sua voz de tenor, a acompanhava. Geralmente estes encontros musicais continuavam com os dois dançando valsas.

Quando mamãe morreu, a família, reunida , cantou para ela em todos os momentos. Ela foi enterrada com os filho e os netos cantando e tocando violão. Lágrimas não seriam permitidas, Que ela levasse a alegria com que nos presenteou uma vida inteira de convivência.

Com meu pai foi diferente: havia injunções políticas e ele ficou em São Pedro da Aldeia com aviões sobrevoando em rasante o céu, em sua homenagem. Mas as rosas que colocaram sobre ele eu as cobri de flores da acácia rainha, era o tempo delas florirem, e como ele gostava destes cachos caprichosos que se amarelavam de pequenas flores! Mesmo sob protesto das autoridades presente. Tia Dulce e tia Odete viram em silêncio a minha ida às ruas, voltar carregada de acácias e recobrir o corpo dele.


Tanto papai quanto mamãe tinham uma afinação perfeita na voz, cantavam com doçura para que dormíssemos. Éramos sete filhos. Cada noite um deles era embalado no colo do papai, não importasse a idade.

O tempo passou , seis filhos ficaram, netos e bisnetos nasceram e seguiram pela vida a cantar. Então, quando a família se reúne acontecem momentos como este: Claudio, marido de Cristina, ao violão ; Cristina canta e olha para ele dizendo de seu amor. Sua filha Laura a ajuda em Penas do Tiê, depois os homens fazem a cancão, Philippe, Pedro filma e Claudio, que também toca um cavaquinho de fazer a alma gemer, reforça o tom.

É uma família musical, por exelencia. Todos tocam piano e mais algum instrumento. Estes que cantam agora são filho de Vera Lucia, minha irmã. https://www.facebook.com/photo.php?v=614581641896261&set=vb.100000332926991&type=2&theater

Não iria escrever nada hoje, ainda mais no domingo, dia de Vera Guimarães, a Senhora do Tempo, mas não resisti contar tudo isto.


quinta-feira, 8 de agosto de 2013

A GUARDADORA DAS ÁGUAS (ou de como não se pode conter a força das águas)



Eloísa Maranhão


Para Frei Titto, para os guerrilheiros do Araguaia, e para todos que enfrentaram as ditaduras militares no Brasil e na América Latina... e para Las Madres de Plaza de Mayo que "só queria agasalhar meu anjo, e deixar seu corpo descansar". 



Enquanto os milhares de outros bebês que nasciam naquele momento no mundo inteiro choravam de desconforto e dor para respirar, abandonando o útero materno quente e aconchegante, Marina apenas resmungou, revoltada de ter saído das águas para um ambiente seco. Resmungou para deixar clara sua revolta, mas recusou-se a chorar para poupar as lágrimas. E assim foi durante toda sua vida; chorava a seco, recusando-se a perder aquilo que era seu tesouro pessoal: as águas.

Assim Marina cresceu, amando as águas e cuidando para que se mantivessem sempre limpas, e sempre correntes, e sempre em seus cursos naturais, o que não era fácil naquelas épocas em que a tecnologia era tão valorizada, e domar a natureza também; naquelas épocas em que os homens ainda não sabiam que a natureza não se doma, pois o instinto e o poder de milhões de anos sempre encontram um meio de impor sua força, e os governos eram ocupados por tecnocratas tão entendidos de novas tecnologias e matérias-primas e fontes de energia, e tão pouco sábios em todo o resto. Aliás eram tão, mas tão sem sabedoria, que nem sabiam - suprema lástima! - que o resto é o que realmente importa. E que o que não importa é resto. Eles não sabiam e nunca vieram a saber, morrendo nos seus devidos tempos sem aprender nada de importante com a vida, mas Marina sabia, soube desde que nasceu, e acabou morrendo fora do tempo por isso.

Ainda bebê gostava dos banhos demorados que tomava de chuveirinho, ou dentro de bacias no quintal; ficava com a pele enrugada de tanto se demorar dentro d'água, sentindo-se umedecer, molhar, refrescar nas águas geladas no calor, ou esquentar nas águas tépidas, quando fazia frio; sentia-se no seu meio natural, e logo percebeu que seu nome, Marina, viera a calhar.

Tinha pais da geração e do tipo hippie, que adoravam viajar nos fins-de-semana procurando estar mais perto da natureza; procuravam cachoeiras, matas virgens e nem tanto, até as já defloradas serviam nesse mundo escasso de virgens de todo tipo - o que para seus pais e para a menina não fazia a menor diferença, ter virgens de mais ou de menos, ao contrário da sociedade em geral, que ainda se batia pela virgindade de suas filhas, o mesmo não acontecendo com a dos filhos, sabe-se lá Deus por quais motivos ocultos. Procuravam rios de águas clarinhas e frescas, limpas, que pudessem usar para beber e para nadar, lagos e lagoas onde pudessem molhar os pés e olhar os patos, gansos e outras aves deslizarem e pousarem mansamente, riachos e córregos de todos os tipos, dos que brotam das pedras, e dos que encharcam as terras, e dos que se aprofundam e somem no meio das rochas ou no meio da mata.

Daqueles anos de sua infância Marina sempre se lembraria com saudades, aquela nostalgia de quem foi feliz e sabia, e por isso aproveitava todos os momentos, sorvia-os, sugava-os com canudinho, mergulhava neles espantando qualquer sinal de melancolia ou de "um dia isso pode acabar". Para Marina, como para todas as crianças, os momentos se esgotavam em si, e o futuro seria vivido no momento certo, e não no presente, como angústia ou ansiedade. Isso é para os adultos, e a menina nunca foi nem quis ser adulta antes do tempo.

Lembrava-se com um gozo cortante e amolecedor de quando as chuvas chegavam; sim, por que antes das chuvas, quando estas se estavam guardando e preparando, Marina se sentia um bicho enjaulado; ficava deprimida, irritada, agitada sem saber porque, procurando e não encontrando, aquela fome de tudo que alimento nenhum saciava, aquela moleza e vontade de chorar; uma TPM infantil. Mas quando chegava a chuva tudo que era ruim e doloroso passava magicamente, ficava para trás, no esquecimento benvindo; a chuva lavava Marina por dentro e por fora, por que sempre corria para o quintal, para a rua, sem suportar que lhe privassem das águas; era um ser aquático vivendo deslocadamente num meio seco. E passou a vida procurando molhar o que devia ser mudado para que se sentisse feliz.

Por exemplo, molhar o ambiente árido das escolas em que estudava, com aquelas lições imensas para serem feitas em casa depois das lições imensas feitas na escola; molhar a desertidão das filas e dos uniformes que era obrigada a enfrentar, e os cantos ufanistas louvando a pátria, "as praias do Brasil ensolaradas, lá rá lá rá, eu te amo meu Brasil, eu te amo", ou louvando a Deus e ao maná "papai do céu abençoe esse lanchinho que vamos tomar"; umedecer os livros didáticos e as aulas de moral e cívica, assim como as de matemática, história, geografia, francês e inglês, e língua pátria, a suprema abominação das cópias quilométricas em cadernos de caligrafia, e as redações com temas e número de linhas definidos - muitíssimo bem delimitados - como aliás tudo o mais na vida das crianças dentro da escola, como se escrever e pensar pudessem ser contidos no tempo e espaço; todas as férias Marina escrevia sobre "minhas férias no sítio" (mesmo que não tivesse ido para sítio nenhum), e contava dos rios em que nadou, das fontes que visitou e sentiu os respingos na pele, das lagoas cheias de aves e peixes, com os quais havia conversado e convivido e sido feliz; contava que passara horas deitada de barriga pra cima olhando as nuvens, identificando cirros, cumulus, nimbus, stratus, imaginando as formas delas, que pareciam tubarões, arraias, golfinhos, anêmonas com tentáculos, plantas aquáticas, vitórias-régias, seres de outros planetas, e tentando calcular mentalmente quanto vapor d'água conteriam (pois as nuvens são formadas por vapor d'água, aprendera nas aulas de ciência, naqueles tempos em que só havia água nelas, e não ácidos e enxofres) e quando deveriam chover e se esvaziar, enchendo-a de alívio quando chegavam.

Portanto Marina passara a vida tentando molhar o ressecado, regar o árido, pra ver se brotava vida de algum tipo naquele imenso deserto que era a vida e a nação debaixo de uma ditadura militar; tentava molhar a igreja e a religião, lendo a Bíblia de trás pra frente, procurando outras interpretações para ela, criando rezas e orações especiais e diferentes que chegassem mais rápido e com mais eficácia aos céus; tentava molhar as brincadeiras com os amigos na rua, inventando regras novas para jogar bolinhas de gude e soltar pipa, afinal o objetivo não era que as bolinhas fossem matadas e as pipas empinadas? Mas os amigos não compreendiam tão filosóficas regras, já que as antigas e tradicionais sempre lhes pareciam naturais, pra quê mudá-las?, e entendiam menos ainda a necessidade que a menina sentia de molhar a vida e acabar com a aridez dela.

Cresceu assim solitária, no meio de tanta gente, molhada no meio do seco, cheia de vida no meio do deserto; e só começou a perceber que era muito diferente, um ser úmido e fluido no meio da rigidez, quando percebeu o que fazia a vida secar.

Não foi algo mágico, "a compreensão desse instante solitário", caído sobre ela; foi, antes, um processo, que levou Marina a questionar tudo, comparando com as águas que fluíam dentro dela, e das quais tinha vindo e nas quais seus ancestrais haviam vivido e lhe deixado gravado no corpo; foi sentindo no próprio corpo a diferença entre ser e não-ser, entre se submeter e mandar, entre ser livre e escrava, que Marina foi percebendo a rigidez e a sequidão do mundo que a rodeava, das regras e normas que lhe faziam obedecer, das leis e da autoridade que lhe haviam imposto sem que pudesse escolher; sentia a dureza e a inflexibilidade dos sistemas, a escola, a família, a religião; tudo lhe parecia seco em contraste com as águas que deviam e podiam chover e penetrar onde quisessem, sem necessidade de explicações ou justificativas, simplesmente por que existiam e cumpriam sua missão: ser água e ser livre. Ser o que era e não o que lhe obrigassem. Nada conseguia conter as águas, e nada continha Marina, ao menos internamente.

Sentindo a intensa e terrível ruptura entre ser o que queria e ser o que podia, entre o interno e o externo, o pessoal e o social, Marina começou a se debater como um peixe fisgado. A boca sangrava, a rede oprimia, e ela foi percebendo que debater-se não resolvia. As forças externas eram mais fortes que as internas, que a vontade de liberdade e o desejo de expansão.

E foi se debatendo que Marina acabou chegando a pessoas como ela, fluidas, flexíveis, seres aquáticos num mundo terrestre; do mesmo modo que não se pode conter as águas, não se pode impedir que os seres aquáticos se encontrem, reúnam-se, misturem suas águas, e espumem, e borbulhem.

Não se consegue impedir que as águas caminhem por onde queiram, assim como não conseguiram impedir que os seres aquáticos abrissem seus próprios caminhos no meio do deserto. Apesar dos tanques, dos canhões, das metralhadoras, dos rolos de arame farpado fechando os caminhos; apesar das fardas, e dos coturnos, dos quépis, das condecorações, dos desfiles e marchas oficiais; apesar das leis, das regras, das normas, dos regulamentos, dos castigos e punições; apesar dos concursos públicos, dos empregos difíceis, do dinheiro dos empresários, do poder dos amigos, das relações pessoais; apesar dos telefones grampeados, das intervenções nos sindicatos, dos partidos políticos proibidos, do fechamento do Congresso; apesar do medo, das traições, das delações, das prisões, das torturas... apesar, ou mesmo por tudo isso, os seres aquáticos continuaram a se encontrar, e agitar, e espumar, e borbulhar, e nadar no meio dos imobilizados, das trilhas dos corpos estáticos e mortos, por entre as pedras, as folhas, os galhos, as redes, os animais apodrecendo cheios de fedor, por entre todo tipo de obstáculos que pareciam intransponíveis.

Marina vivia, enquanto isso acontecia lá fora; vivia como podia, como podiam os adolescentes, assustada com o que os adultos e poderosos faziam da vida, apavorada com o que os humanos faziam de sua humanidade, represando os instintos e vivendo pela metade. Nos dias de sol inclemente que derretia o asfalto das ruas, amolecendo-o e formando poças pastosas, Marina costumava sentar-se na varanda do quarto de sua casa no interior e conversar sobre o futuro com suas amigas.

Futuro era uma palavra tão distante, como se uma ou duas horas depois não fosse futuro; futuro era o que as pegaria de surpresa dali a alguns anos, muito tempo à frente. Fazendo as contas sempre descobriam estupefatas que teriam bem mais de quarenta anos no ano 2000, imagine, mais de qua-ren-ta-a-nos!, velhas, vamos estar muito velhas.

Umas ficavam em desespero, velhas, com rugas, filhos crescidos, maridos barrigudos, seios caídos - delas, não dos maridos - isso por que ainda não havia a abençoada cirurgia plástica, os liftings, as lipoaspirações assassinas; davam gritinhos de desespero assanhado, enquanto Marina pensava. Não achava assim tão drástico ter quarenta anos, sua intuição lhe dizia que seria interessante, que se sentiria bem, talvez até mesmo feliz, quando fosse adulta e independente, podendo cuidar da própria vida e morte, inclusive se matando se achasse conveniente.

Já nessa época, por volta dos treze, catorze anos de idade, Marina lia Sartre e Camus, considerando o suicídio uma opção, uma boa saída se não houvesse nenhuma outra. Era seu trunfo para o futuro, caso ele fosse insuportável. Nunca lhe passava pela cabeça pensar no suicídio como covardia, como achavam alguns, pois para ela era um direito seu e de todos, um direito inalienável de todo ser humano poder dispor da própria morte, assim como deveria poder dispor da própria vida. Gostava de se sentir trágica, uma Medéia ou uma Perséfone brasileira, a tragédia lhe dava sensação de profundidade, excentricidade. Gostava de olhar-se no espelho sofrendo, as lágrimas escorrendo de seus olhos que se tornavam mais verdes assim úmidos, o sofrimento imaginário pelas mazelas concretas lhe caía bem.

Sofria pelas crianças famélicas, de pé, ó vítimas da fome!, sofria pelos bombardeados da guerra, sofria por Anne Frank, por Polianna, por Chico Buarque e seus olhos verdes cor de ardósia exilado no exterior, barbudo, bêbado e infeliz, sofria por Víctor Jara com as mãos e a língua cortadas pela ditadura dos vizinhos andinos, da ditadura do “pobre ancião” cujo Papa, muitos anos depois, intercederia por clemência - por que não pediu piedade para os torturados? - sofria por todos e por si mesma, por ser cidadã deste mundo cão e vil.

Sofria de amor platônico pelos professores da escola, costumava apaixonar-se por um a cada ano, geralmente os mais intelectuais, mesmo que mais feios, casados, com esposa e cheios de filhos, e ia sempre muito bem nas matérias que eles lecionavam.

Apaixonava-se também pelos personagens e escritores dos livros que retirava na biblioteca municipal, A.J.Cronin, Érico Veríssimo, Darwin, Garcia Márquez, Sartre, Dostoiévski, Galileu Galilei e Giordano Bruno (tinha um fraco pelos renascentistas), apesar das fotos impressas nos livros mostrarem homens velhos e horrorosos; mas isso não importava, e ela lhes escrevia cartas, conversando todas as noites com eles, sem se importar que àquela hora deveriam estar ocupados com suas esposas e amantes, ou há muito, muito tempo, apodrecidos em seus túmulos.

Sabia que vivia na tangente da vida, que qualquer forçazinha maior poderia jogá-la fora, assim como tinha receio de ser sugada para o centro - nesse caso era preferível continuar na tangente. Vivia na tangente da vida assim como vivia na periferia da grande capital de seu país, que por sua vez vivia na periferia do continente, e este na periferia do planeta e este na periferia do Sistema Solar, que vivia na periferia da galáxia, e esta na periferia do Universo... haja luz, e houve luz, um grande big bang, mas a luz foi apropriada por alguns mais espertos enquanto outros continuavam periféricos pela vida afora, mal iluminados e cheios de frio na alma.

Continuou sofrendo pela vida adentro, sabendo que se houvesse uma redenção esta estaria no futuro, na velhice, quando tornar-se-ia sábia, muito velha e muito sábia, repleta de histórias para contar e de doces para as crianças; teria aprendido a amar as pessoas, individualmente, sem exasperar-se com sua mediocridade, suas pequenas e odiosas mesquinharias. Teria aprendido a molhar o mundo, nem que fosse com suas lágrimas.

Nessa época, apesar de ter alguns poucos amigos e uma multidão de conviventes, amava a humanidade em geral, irritando-se com os indivíduos especificamente; preferia amar apenas as aves do céu, os peixes do mar e as bestas feras do campo, que nada lhe exigiam nem a decepcionavam. E, claro, os professores e intelectuais, que lhe faziam companhia na sua solidão.

Os tempos eram de ditadura militar, mas suas amigas, como ela própria no início, nem se apercebiam disso, vivendo como tantas outras meninas, preocupadas com a escola e os garotos, as roupas que iam usar, os discos que poderiam comprar com o pouco dinheiro que possuíam, apaixonadas pelos artistas de cinema e da televisão.

Eram tempos de transamazônica na rede de televisão do grande apresentador dos domingos, que louvava os feitos dos governos militares enquanto estes esmagavam a juventude e outros nem tão jovens da oposição. Tempos de desfiles de 7 de setembro, data tão festiva, foi a independência desta terra tão querida, e Marina adorava desfilar na fanfarra da escola, com o uniforme cheio de cordonês e botões dourados, com franjas que marchavam junto ao vento; só não gostava de tocar triângulos e pratos, sonhando em sair empunhando uma caixa de repique ou um surdo, a glória seria tocar um bumbo daqueles bem grandes, amarrados na frente do peito com tiras de couro nas costas, mas isso era apenas para os meninos, futuros homens da república, herdeiros legítimos do milagre brasileiro. Ela ainda não sabia que as louras do norte do mundo queimavam sutiãs em praça pública. Eram tempos de MOBRAL e Don e Ravel, você também é responsável, então me ensine a escrever, e a menina sonhava em ser professora e acabar com o analfabetismo, tomara que sobrem alguns analfabetos para quando ela crescer, e como sobraram e se reproduziram, a miséria se espalha como erva daninha quando não arrancada constantemente. Sobraram, mas Marina já não havia mais, justamente por que desejava acabar com o analfabetismo e todo tipo de outras injustiças.

Eram tempos de Gretchen, Lady Zu, Odair José, desbravamento da Amazônia, integração nacional, músicas bregas que todos cantavam, pois ninguém passa impune por uma ditadura militar, mesmo que não perceba, mas Marina se recusava. Apenas ela guardava tudo, inconscientemente, em seu coração, grande e sensível, sofrendo as dores que outros fingiam ou realmente não sentiam.

Apesar da opção de um futuro abreviado pelo suicídio, sentia que o futuro, aquele futuro distante, poderia ser mais interessante que o presente, e que valia a pena esperar um pouco mais; afinal, se nada tinha sentido mesmo, então por que não pagar pra ver? E enquanto vivia ir mudando tudo, molhando o seco?

Assim nasceu Marina. Nasceu pela segunda vez no mar, durante um batismo num navio, quando pegou as poucas coisas que tinha, mudou-se para a cidade grande que tinha mar e decidiu fazer parte de um grupo de guerrilha e foi aceita, apesar da pouca idade. Era uma das mais jovens do grupo, o que era absolutamente irrelevante, por que apesar, ou justamente por ser tão nova, era a mais corajosa, a mais destemida, a que ia sempre na frente, e empunhava as armas, e falava nas esquinas para grupos de transeuntes que paravam para escutá-la mas logo se afastavam com medo, enquanto ela corria e se misturava à população, quando apareciam policiais de ronda.

Doce Marina, melíflua Marina, de água doce com açúcar, que brigava, lutava, corria, se escondia, e tudo por que decidira ensopar o mundo, liberando as águas que outros haviam represado sem consultar ninguém, nem pedir desculpas pelas conseqüências do represamento mal feito.

Doce Marina que um dia, sem nunca ter sabido como, acabou presa pelos homens da ditadura, levada do apartamento em que morava com alguns companheiros, companheiros que nunca mais a viram depois daquela manhã ensolarada em que foi levada de camisola, chinelo de dedo e com apenas uma muda de roupa e a escova de dentes que lhe permitiram pegar.

Doce Marina, presa sozinha, sem janela para ao menos olhar o mar, ou as nuvens, sem água para molhar-se, e que naqueles dias pôde contar apenas com as águas que havia guardado dentro de si; cantava canções de mar e chuva que os companheiros das outras celas escutavam com os olhos marejados, sem saber quem estava cantando e embalando-os naquelas noites de escuridão nacional.

Marina cantava, esperava o tempo passar, se recusando a falar qualquer coisa sobre as atividades e pessoas do seu grupo; sabia que havia caído delatada por alguém, mas se recusava a derrubar outros; calou-se, e isso foi sua ruína. Seu silêncio e sua beleza úmida e doce, de águas de igarapés profundos, os cabelos escorridos como depois da chuva, os olhos e lábios sempre úmidos, e a alma sempre encharcada de sonhos, de justiça, de vontade de mudanças, de igualdade.

Marina cantava enquanto lhe batiam, enquanto torturavam, cantava interiormente em meio aos choques elétricos que queimavam e ardiam seus dedos, suas orelhas, suas narinas, sua língua, sua vagina. Fechava os olhos e pensava nas chuvas e nas ondas do mar enquanto seu corpo era tomado de si, usado por outros, despersonalizado, machucado, arroxeado, estuprado. Não aplicaram nela a máxima do governador do seu Estado de origem que declarou anos depois na televisão "está com vontade sexual? Estupra, mas não mata". Com ela, como com outras, os homens da ditadura fizeram o serviço completo. Estupraram e mataram.

Marina estava morta. Tão leve aquele corpo quando a carregaram, colocaram no carro, amarraram uma pedra grande e levaram para o mar. Tão leve aquele corpo quando bateu nas ondas e afundou, acolhido pelas águas, os cabelos enroscando-se em algas enquanto afundava. Tão leve aquela alma que não levava as omissões, nem as delações, nem as covardias da maioria dos habitantes que andavam pelas ruas das cidades como se nada estivesse acontecendo.

Marina estava morta. E ninguém sabia. Não houve velório. Não houve enterro. Não houve condolências para os que a amavam. Só a ausência, pesada como a pedra que havia afundado seu corpo.

Marina estava morta e o povo vivia normalmente. Marina estava morta e ninguém sabia. Marina estava morta e seus torturadores viviam. Eles sabiam. Só eles sabiam, mas nunca falariam. Morreriam velhos, entre os filhos e netos, sem nunca contar quantos, como e onde mataram. Eles só sabiam por que mataram. Receberam ordens para agir, e o fizeram pela Segurança Nacional. Marina estava morta e eles nunca carregariam essa culpa, pois não sentiam culpa por essas mortes.

Nem notaram que Marina estava mais viva que eles. Que os mortos estavam vivos, e eles eram os mortos. Nasceram mortos, viveram mortos, morreram já mortos. Não notaram nem nunca notariam, por que os mortos nada notam.

Marina estava morta como o resto do país. Morta de miséria, morta de desigualdade, morta de injustiça, morta de dependência, morta de entreguismo, morta de desesperança. Mas Marina estava morta da morte alheia, da morte que os vivos repassaram a ela, da morte que a fizeram morrer para que pudessem continuar mortos-vivos.

Marina estava morta e ninguém sabia. Ninguém chorava. As águas continuavam represadas.

Seu corpo afundou no mar, e os peixes desandaram a chorar. As algas choravam. O plâncton chorava. As baleias e tubarões verteram suas lágrimas. As ostras e os mariscos abriram suas conchas e choraram por Marina. As anêmonas, as estrelas-do-mar, os pepinos-do-mar, os camarões, e lulas, e polvos choraram, os siris choraram e choraram os caranguejos. Choraram as arraias e choraram as cobras marinhas. Os seres aquáticos choraram, e o nível do mar começou a subir.

As águas subiam veloz e violentamente, engrossadas pelo choro copioso dos seres das águas que não conseguiam parar de chorar, por Marina, por si próprios, pela vida, pelo mundo... o Atlântico transbordava.

Os homens altos e loiros de New York fugiram em seus carros subindo os Apalaches para evitar o afogamento, embrenhando-se no continente na tentativa de se salvarem, mas não adiantava muito, pois as águas entraram pelo São Lourenço, transbordaram os Grandes Lagos, desceram pelo Mississipi e Missouri, até o Rio Grande, onde pararam milagrosamente, misericordiosas com os mexicanos, herdeiros desse pobre México, tão longe de Deus e tão perto dos Estados Unidos. As águas pararam ali, formaram nuvens sob aquele sol do deserto, atravessaram o país todo, olhando para o povo indígena que cantava, e dançava, dança da morte e da vida, e jogava futebol e bebia chocolate, e explorava as minas já esgotadas, e plantava milho nas terras baixas e batatas nos platôs das montanhas frias. Batatas que haviam jogado nos navios dos espanhóis, mas não tinham trazido de volta sua princesa asteca, indo alimentar os europeus pelos séculos seguintes. As nuvens atravessaram o pobre México, tão de longe de Deus e tão perto dos Estados Unidos, passaram sobre as indústrias maquiadoras das fronteiras, olhando desconsoladamente e piscando de vergonha. Passaram sobre a capital e viraram o rosto, vermelhas de indignação, para não ver os homens do PRI mal-governando o pobre México. Só choveram no sul, na província de Chiapas, mas isso foi décadas depois, quando o sub-comandante com o rosto encapuzado molhou-se com aquelas águas e decidiu que era hora de dar um basta na secura do seu rico país.

Os europeus da costa do Atlântico também subiam os montes e fugiam desesperados, enquanto pescadores noruegueses abandonavam seus barcos cheios de bacalhaus que seriam salgados e vendidos para o mundo por preços impossíveis de se comer. Vendidos junto com o corpo do Cristo morto que proibia que se comesse a carne dos bois e porcos na quaresma, alimentando as importações dos peixes salgados.

A costa oeste da África recebeu aquelas águas como bênção dos orixás. Os negros saíam às ruas e corriam para as praias para ver aquelas águas abençoadas que fertilizavam suas terras, molhavam seus desertos, salvavam suas lavouras domésticas e coletivas enquanto destruíam as plantations de algodão, e de amendoim, de sorgo e de cacau, de tudo que exportavam para os europeus e agora não mais plantariam. Por que agora a África voltava a ser dos negros.

O Primeiro Mundo assistiu boquiaberto à revolta do Atlântico, que nunca, nunca havia agido assim, sendo um oceano tão compreensivo e tranqüilo até o momento, desde a época do descobrimento da América, apesar do medo que assaltara os primeiros navegantes, e sequer puderam desconfiar que os maremotos e inundações eram provocados pelas lágrimas de uns seres marinhos da periferia do mundo, que sofreram com os olhos secos por tempo demais, mas enfim conseguiram soltar o choro represado dentro deles, liberado pela morte de Marina.

Nunca conseguiram entender nem ficaram sabendo da força que existe na vida e na morte de um injustiçado.

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

SENHORA DO TEMPO. COSTUREIRAS E ARMARINHO

Em 27 de fevereiro de 2011, domingo como sempre, a Senhora do Tempo, Vera Guimarães escreveu esta deliciosa crônica, hoje republicada com ilustração de Patrícia Caetano.


Patrícia Caetano ilustrou

Por Vera Guimarães


Instigada pela amiga Fal, comecei a pensar no assunto: como nos vestíamos em 1940, 1950, 1960?

No interior de Minas, onde eu vivi até meus 18 anos, completados em 1960, não existia roupa pronta para comprar. Nossas roupas eram feitas sob medida, por alguém de casa ou por costureiras, moças e senhoras habilidosas que viviam de transformar tecidos e linhas em nossos sonhos e desejos. No meu caso, minha irmã mais velha, que já se foi deste mundo, era costureira profissional e também fazia nossas roupas, até ela se casar.

No geral, as costureiras faziam todo tipo de vestimenta, mas algumas se dedicavam a alguma especialidade: havia as que faziam roupa de festa, havia as camiseiras, as que faziam calças compridas (slacks), as que faziam roupa de cama...

Catálogo de Verão 1964
Imagem: Flickr 

Até nossas calcinhas e soutiens eram feitos por costureiras. Os soutiens eram feitos de algodão firme, pespontados para ficarem ainda mais firmes, acolchoados com algum material próprio e quase tão pontudos como os do Jean-Paul Gaultier consagrados por Madonna. As calcinhas eram abotoadas de lado, obrigando-nos a uma ginástica para entrar nelas e delas sair. Éramos jovens e flexíveis.

As modistas, outro nome para costureiras, geralmente trabalhavam em suas próprias casas. Nossa irmã costurava num cômodo separado da casa, um barracão ensolarado, de onde soava a cadência da velha máquina de costura PFAFF e de onde saía seu alegre cantar. Sempre achei uma delicia chegar a um desses lugares, cheios de cortes de tecidos, caixas de aviamentos, linhas coloridas, fitas métricas, moldes, vestidos alinhavados em manequins, fiapos pelo chão, e principalmente os figurinos, ah, os figurinos! Meus preferidos eram os Lana Lobell, americanos, que exibiam moças esguias, em vestidos rodadíssimos e cheios de graça, que tentávamos imitar.



Alceu Penna
Foto: Blog Zaz

Além dos figurinos, nossas fontes de inspiração ou cópia eram o cinema e a revista O CRUZEIRO, onde reinava soberano o imortal Alceu Penna, cujas garotas, encanto dos encantos, eram meu ideal de aparência e, principalmente, de atitude perante a vida: esportivas, bem humoradas, soltas, enturmadas, articuladas, tudo o que eu sonhava para mim.

Escolhido o modelo e o tecido adequado ao modelo, definida a metragem , a tarefa agora era ir às compras. Havia muitas, mas muitas mesmo, lojas de tecidos. Minha mãe tinha suas preferidas, fosse pela variedade, simpatia das vendedoras, preço bom, facilidade de pagamento. Eu adorava acompanhá-la nessas expedições de caça ao tesouro. Se a ocasião - uma formatura, um casamento - exigisse algo mais sofisticado, até se considerava a hipótese de uma ida a Belo Horizonte, onde nos maravilhávamos com o tamanho e o estoque da Casa da Sogra ou da Copacabana Tecidos.

Comprar tecidos nos introduzia num mundo de vocabulário precioso: cetim, cetim de algodão, gorgurão, fustão, tricoline, tafetá, organza, organdi, laise, seda-pura, veludo, shantung, changeant, chiffon, mousseline, crêpe, cambraia, renda valenciana, renda marescot, renda guipure...

Definir com exatidão o que queríamos implicava o uso de um jargão e falávamos com propriedade sobre blusado, enviesado, nesga, manga japonesa, manga fofa, manga ¾, redingote, godet, evasé, plissé, chemisier, palavras que, ademais, nos familiarizavam com a língua francesa.

A confecção das roupas demandava no mínimo duas idas à costureira: tirar medidas e fazer a prova. Dependendo do grau de detalhismo da freguesa ou da profissional, essas provas viravam duas ou três. Finalmente, a emoção de sair da costureira carregando a preciosa carga envolvida em papel de embrulho – lembro-me direitinho dos tons de rosa, verde, amarelo ou azul desses papéis -, fechada nas laterais com alfinetes, por supuesto.

Lá pelo fim da década 1950, começaram a chegar à cidade as lojas de roupas prontas, as confecções, onde comprávamos principalmente roupas de malha, lingerie, as meias e os agasalhos para a escola. Nada muito sofisticado.



Mas, ah, sofisticado, comprado pronto e certamente importado foi o que uma de minhas irmãs ganhou dos patrões, num Natal: um conjuntinho de ban-lon, malha macia como eu nunca havia tocado, num amarelinho pastel encantador, aquela coisa mais linda que só se via nas revistas e nem ao menos se podia copiar.

Deve ter sido por aí que começou o domínio das confecções, que investiam no que não podia ser copiado, ao mesmo tempo em que valorizavam suas marcas, suas logomarcas, e assim deslocavam das salas das modistas para as novas lojas o objeto do nosso desejo.

Sei que aos poucos fomos abandonando as costureiras. Guardo delas, e de tudo que cercava seu ofício, lembranças carinhosas.

Ah, os armarinhos do título? Ficam para uma próxima conversa.














PÊÉFE às 06:01

terça-feira, 6 de agosto de 2013

DO IMPACTO QUE MATOU SATÉLITE

Fal Vitiello de Azevedo




Um livro é tão mais, mais do que palavras, do que uma história, mais do que palavrinhas enfileiradas, doces, amargas, ecoando em nossa caixa toráxica.
Um livro é tão mais do que um universo, dois, três mundos imaginados, vitórias, medos, certezas, uma Lua que se tenta alcançar em uma cápsula vitoriana lançada por um canhão.
De sons garantidos pelo silêncio, de pequenas sublimações de amigos acrobatas, um livro pode seguir, este livro pode seguir, abrindo caminho pela pele, arrebentando veias, estilhaçando músculos, arrastando correntes.
Um livro nos faz fechar os olhos no meio da página,este livro nos faz fechar os olhos no meio da página e pensar no que há e não há, no possível, no tangível, no que está.
As nossas dores e verdades, encantamentos e certezas. Expostos, claro, quando queremos, quando não queremos, quando anunciamos, quando calamos, quando desafiamos todas as leis da física e abrimos a escotilha e atiramos, no espaço sideral, o corpo que nos seguirá como um fantasma, talvez amigável.

Digo, penso, acho, sou nas palavras de Esther, no ritmo de Esther, no que Esther revela, no que Esther adivinha. Ao sol, penduradas, nossas breves vaidades, nosso profundo encantamento.
Esther inventa meu dia, ela me vê saturada e aflita, pronta e exausta, sobrecarregada e frustada, iludida, sorridente. Ela sabe que você será lançado no Cabo Canaveral rouco e sombrio, ainda que em cem anos, ainda que de uma outra forma, ainda que não seja lá.

Um rei amou Esther mais do que a todas as mulheres e lhe disse sim e incrustou sua coroa de joias e abriu caminhos e ofereceu segredos e desdobrou o linho e respirou o sol e construiu parênteses.
A cadência que ondula, as frases, petardos, as metáforas, comboios. Minha Esther profética sonha com viagens do próximo século, com bibelôs eduardianos, com avanços ainda sem nome.
O rei amou a Esther mais do que a todas as mulheres, eu amei a Esther mais do que todos os demais e em suas palavras encontrei a Graça e perseverei e entendi os sinais e amei as respostas e fui salva, mais de uma vez. E fui salva, todos os dias. E fui salva de mim mesma, de você, das palavras dela, da minha dor abissal, do impacto que matou Satélite, do impacto, do impacto.

E as jóias da coroa de rainha nos cabelos dela.
você encontra o livro da Esther aqui