domingo, 22 de janeiro de 2012

SENHORA DO TEMPO : CLARICE - UM ANIMAL NUNCA DOMADO

Por Claudia Lopes Borio
(Claudia é advogada, tradutora e escritora em Curitiba, Paraná)

Dox Lucchin fez Clarice Azul especialmente para nós, um menino muito talentoso aqui de Curitiba. Tenho acompanhado a carreira dele. Ele tem um blog:http://doxlucchin.blogspot.com/


Clarice já foi descrita como sendo o que Rilke poderia ter sido, se ele fosse um brasileiro judeu nascido na Ucrânia. A poetisa Elizabeth Bishop a descreveu como sendo “melhor do que Jorge Luiz Borges”. Caetano Veloso disse que ela foi uma das maiores revelações da sua adolescência, junto com o sexo, o amor e a bossa nova. Mas quem foi Clarice?

Clarice era uma menina judia, nascida na Rússia.Sua origem familiar está envolta em lendas. Diz-se que, durante a guerra civil que se seguiu à Revolução Bolchevique, a região russa de Podolia, onde morava a família de Clarice foi tomada por uma sucessão de pogroms genocidas.
Em 1918, o avô de Clarice foi assassinado, o seu lar familiar foi destruído, e logo depois sua mãe, Mania, que já era mãe de duas crianças pequenas, teria sido estuprada por vários soldados russos – ficando infectada por sífilis, na época uma doença incurável.
A família Lispector se juntou às hordas de refugiados famintos que cruzavam o que hoje é a Moldávia, procurando escapar para o Novo Mundo. Sem acesso a tratamento médico, Mania e seu marido recorreram a remédios caseiros, um dos quais seria uma crença popular de que uma nova gravidez poderia curar uma doença venérea. Clarice, cujo nome judaico era Haia, ou luz, teria nascido em 1920, embora tenha declarado mais tarde que teria nascido em 1925. No entanto, a maior parte dos seus documentos traz a data de 1920.

A inabilidade de Clarice de salvar a vida de sua mãe foi uma fonte de remorso dilacerante que ela mencionou em uma entrevista: “eles me fizeram com uma missão específica, e eu os decepcionei. Foi como se estivessem contando comigo nas trincheiras de uma guerra e eu tivesse desertado”. A doença da mãe, incurável na época, provocava a sua paralisia progressiva e outros tristes sintomas.

A própria irmã de Clarice, também escritora, Elisa Lispector, tem um conto chamado “Medo”, onde relata uma pessoa que acorda de uma cirurgia e pensa na “voz com que se constrói a palavra se contém o mistério que dimensiona o ser e o mundo. MÃE, foi a palavra que em seguida murmurou, numa reversão ao módulo simbolizando a origem, a primeira descoberta. A mais primária revelação.” (Inventário, Elisa Lispector).

No conto “Restos do Carnaval” Clarice relata como, ainda menina pequena, recebeu, quase sem querer, uma fantasia de carnaval feita com restos de fantasia de uma amiga, e que ficou “tonta de felicidade” com os simples preparativos da fantasia, “foi quando aconteceu, por simples acaso, o inesperado. Sobrou papel crepom, e muito. E a mãe de minha amiga- talvez atendendo a meu apelo mudo, ao meu mudo desespero de inveja, ou talvez por pura bondade, já que sobrara papel – resolveu fazer para mim também uma fantasia de rosa com o que restara de material. Naquele carnaval, pois, pela primeira vez na vida eu teria o que sempre quisera: ia ser outra, que não eu mesma”.

Eis que esse mesmo carnaval se tornou “tão melancólico”, pois no momento em que se arrumava sua mãe teve uma crise e ela teve que correr para a farmácia comprar um remédio. Ficou triste por toda a noite, inclusive dentro do baile. No entanto, ao final do baile, um menino muito maior, numa mistura de “grossura e sensualidade”, despejou-lhe um punhado de confetes na cabeça, fazendo-a sentir mulher - e desejada pela primeira vez na vida. Sentimento que a acompanharia, com vários graus de insatisfação, pelo restante da vida.

Sempre disse que sua primeira língua foi o português, embora apresentasse um sotaque indefinível. Certa vez, em entrevista, disse que parecia ter sotaque, pois tinha a língua presa. É mais um dos mitos que a acompanharão.

Sua família foi morar no Recife, onde havia uma grande colônia judaica. Eram pobres. O pai, matemático, muito inteligente, não pôde estudar. Era versado nas escrituras judaicas, muito observante, e seguia a tradição judaica de ser um ótimo contador de histórias. Falavam iídiche em casa. Clarice aprendeu também inglês e francês. Formou-se em direito, o que foi um feito apreciável para a época (pouquíssimas mulheres se formavam em faculdade). Ela mencionou várias vezes que estudou direito por que “queria mudar o mundo”. A sua irmã mais velha também se tornou escritora, tendo publicado pelo menos dois livros A irmã do meio virou funcionária pública, e Clarice trabalhou como jornalista, até se casar com um diplomata.

Em mil novecentos e quarenta e três, o primeiro romance de Clarice foi publicado. Isso aconteceu um ano depois que Stefan Zweig se suicidou em um local próximo ao Rio de Janeiro – outro escritor judeu que achava que o Brasil era refúgio contra o genocídio. O romance era “Perto do Coração Selvagem”, uma história simples que causou sensação instantânea, um homem dilacerado entre uma amante e uma esposa animal. É uma história tremendamente amoral.
Na época da publicação, críticos e leitores acharam seu estilo semelhante ao de Virginia Woolf ou ao de James Joyce, mas ela afirmou não ter lido nenhum destes autores antes do seu romance de estréia. Na verdade ela mencionou que na época lia Spinoza. O título foi sugerido por Lúcio Cardoso, amigo da autora, após o livro ter sido escrito. Era retirado de uma frase do Retrato do Artista Quando Jovem de James Joyce : “Ele estava só. Estava abandonado, feliz, perto do selvagem coração da vida” (Portrait of the Artist as a Young Man: “He was alone. He was unheeded, happy, and near to the wild heart of life”).

A literatura brasileira era, naquela altura, dominada por uma tendência essencialmente regionalista, com personagens contando as dificuldades da realidade social do país na época. Clarice surpreendeu a crítica com seu romance, seja pela problemática de caráter existencial, completamente inovadora, seja pelo estilo solto, elíptico e fragmentário.
Quando perguntada sobre a similaridade entre a personagem principal deste livro e ela mesma, Clarice respondeu como Flaubert: “Madame Bovari, c’est moi”.

Clarice casou-se com um colega de faculdade, Maury Gurgel Valente, culto e inteligente, que veio a se tornar um diplomata. Essa mulher de espírito selvagem, descrita por um poeta amigo como uma “lobisomen fêmea”, deveria passar o resto da vida, passiva e submissa, servindo sanduíches em chás da embaixada em lugares como Berna, cidade tão tediosa que um amigo que vai visitá-los a descreve como sendo eternamente domingo, com as pessoas todas adormecidas e um silêncio irritante.

Ela conta uma história de um encontro com um homem que está em um ponto de ônibus com um coati em uma coleira. Ela imagina se o homem o levasse para brincar em uma praça, em um certo momento o coati ficaria desconfortável. “Porque será que os cachorros estão me olhando assim?”... depois de um dia perfeito sentindo-se como um cachorro, o coati se sentiria melancólico, olhando para as estrelas e perguntando -mas afinal, o que será que está errado comigo? Porque sinto esta ansiedade, como se eu amasse alguma coisa que não conheço?”. . .
“- Que bicho é esse? perguntei-lhe, e intuitivamente meu tom foi suave para não feri-lo com uma curiosidade. Perguntei que bicho era aquele, mas na pergunta o tom talvez incluísse: "por que é que você fez isso? que carência é essa que faz você inventar um cachorro? e por que não um cachorro mesmo, então? pois se os cachorros existem! Ou você não teve outro modo de possuir esse bicho senão com uma coleira? mas você esmaga uma rosa se apertá-la com força!" ( Para não esquecer - Clarice Lispector, Rio de Janeiro, Rocco, 1999)

Em1946, apresentada por Rubem Braga, conhece Fernando Sabino que por sua vez a apresenta a Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos e, posteriormente, a Hélio Pellegrino, amizades que cultivará pelo resto da vida, com intensa troca de correspondências.

Em carta às irmãs, em janeiro de 1947, de Paris, Clarice expõe seu estado de depressão e dificuldade de adaptação à vida que levava. :"Tenho visto pessoas demais, falado demais, dito mentiras, tenho sido muito gentil. Quem está se divertindo é uma mulher que eu detesto, uma mulher que não é a irmã de vocês. É qualquer uma.”
Em 1959, desesperada de saudades, Clarice abandona seu marido em Washington e volta para o Brasil com seus dois filhos.

No mesmo ano começa a escrever a coluna "Correio feminino - Feira de Utilidades", no jornal carioca Correio da Manhã, sob o pseudônimo de Helen Palmer. No ano seguinte, assume a coluna "Só para mulheres", do Diário da Noite, como ghost-writer da atriz Ilka Soares. Ela oferece conselhos para as mulheres, como não chamar a atenção para si mesmas com roupas muito coloridas ou evitar risadas muito altas. É uma forma de obter uma pequena renda, que muito lhe faz falta, mas também uma ironia para esta mulher que se formou em faculdade e transitou em meios culturais muito elevados.
Nesse período, o marido lhe escreve uma carta muito enigmática, em que ele assume uma “persona” literária e a trata também por um pseudônimo, buscando a reconciliação e recomendando a ela que leia um livro sobre as disfunções sexuais da mulher, fato pouco explorado por seus biógrafos. O que será que ele quis dizer com isso? Não se sabe que mistérios escondia esse casamento, que finalmente acabou.

Suas duas últimas décadas contam uma história triste: fumante inveterada, ela só consegue dormir por meio de remédios, e interna-se voluntariamente várias vezes, em clínicas psiquiátricas. Um de seus filhos, muito inteligente e vivo, acaba desenvolvendo esquizofrenia, e a sua beleza física, sempre muito marcante, vai desaparecendo aos poucos. Apesar disso, sua obra é constantemente redescoberta, inclusive pela nova geração dos anos 60, que encontra nela a libertação da ditadura política. O coati, que cada vez mais não consegue agir como cachorro, parece estar se cansando de viver.

Finalmente (em 1966), ela adormece com um cigarro aceso na mão, e há um incêndio em seu apartamento. Ela sofre graves queimaduras, quase morrendo. Seu corpo é queimado, inclusive sua mão boa para escrever, com muita gravidade, o que parece quase predestinação.
                                          Dox Lucchin: As mãos de Clarice

Durante a década de 1970, após ser demitida do Jornal do Brasil (todos os judeus que trabalhavam na publicação foram demitidos neste período – um fato pouco explorado por nossos historiadores), a autora começa a traduzir obras do francês e do inglês para a Editora Artenova. Entre as obras estão contos de Edgar Allan Poe,O Retrato de Dorian Gray de Oscar Wilde, dois romances de Agatha Christie e Entrevista com o Vampiro de Anne Rice.
Seu livro “A Hora da Estrela” é a última novela, talvez seu melhor livro, publicado em 1977.
Dois meses após a sua publicação, ela morre de câncer.

Apesar de nunca fazer referência ao seu judaísmo, ela é considerada por muitos como uma seguidora da tradição judaica da contação de histórias. Moacir Scliar se lembra de uma conversa que teve com Clarice. Ele era muito mais jovem do que ela, mas ela conhecia o trabalho dele e perguntou sobre sua literatura e seu judaísmo. Ele disse que gostava de escrever sobre assuntos judaicos e que não se sentia humilhado ou inferior por causa disso. Ela disse: “eu gostaria de poder escrever sobre isso também”, mas não explicou o que queria dizer com isso.

Na Hora da Estrela, seu personagem principal é Macabéa, que muitos estudiosos acham que se refere aos Macabeus, os guerreiros judeus que derrotaram os Sírios. A Macabéa de Clarice é pouco heróica, é uma mulher jovem e pobre que vem do Nordeste para as favelas do Rio com grandes sonhos mas não consegue evitar um destino triste. Esse destino que Clarice reserva para tantos de seus personagens.
Não esquecendo que Clarice morreu no ano em que a obra foi publicada. No final da história de Macabéa, Clarice ainda fala, premonitoriamente: “Deus, somente agora eu me lembro que as pessoas morrem. Será que isso me inclui?”...

Quando ela morreu, tinha escrito nove romances, oito coletâneas de contos, quatro livros para crianças e várias traduções. Ela se debateu entre contradições e procurava nada menos do que o sentido essencial da existência humana. Para ela, no entanto, até os fatos mais básicos são enganadores.
Para muitos, ela era uma incorrigível mentirosa, dizendo sempre que não era escritora profissional, e contando histórias diferentes sobre o local onde tinha nascido, sua idade e vários outros fatos de sua vida. Ela usava uma porção de máscaras diferentes (sempre quis ser outra que não eu mesma), e, quando tirava uma, as pessoas pensavam que ia revelar algo fundamental, mas sempre revelava outra máscara. Essa recusa em se fixar em uma só identidade marca todo o trabalho de Clarice. Seus personagens sempre incluem mulheres de classe média que estão em meio a casamentos infelizes, casos de amor frustrantes, crianças incorrigíveis, ambições frustradas e ambigüidades sexuais.

Seus devotos claricianos se aproximam dela de muitas maneiras. Clarice é vista como uma escritora que tem uma missão quase cabalística para desvendar o véu entre a palavra e o ser. A obra de Clarice ultrapassa qualquer tentativa de classificação. A escritora e filósofa francesa Hélène Cixous vai ao ponto de dizer que há uma literatura brasileira A.C. (Antes da Clarice) e D.C. (Depois da Clarice). Resta aos leitores a palavra final.

Clarice Cinza. Dox Lucchin