domingo, 8 de setembro de 2013

ISMÁLIA E O LAGO DA PATAGÔNIA



Eloisa Helena Maranhão.


“Quando Ismália enlouqueceu,
Pôs-se na torre a sonhar...
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar...

As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par...
Sua alma subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar...”

(Ismália, Alphonsus de Guimaraens)

Antes de Ismália pôr-se na torre, a sonhar e verificar as duas luas, ela emudeceu. Ela via as duas luas, sabia que eram duas, e não uma, como dizia o senso comum, a pouco sábia humanidade mal acabada de evoluir de uma turva pré-história para o pensamento filosófico e científico. Mas Ismália sabia. Que as luas eram duas, e que a vida era uma só. Isso fazia dela uma pessoa bastante desconfortável, sempre se sentindo pisando em ovos quando tinha de explicar o que quer que fosse. Imagina explicar o que pensava. E o que sentia, então, mais complicado ainda. Nunca dava certo, falava a, entendiam h, dizia p, ouviam mê. Foi por isso que emudeceu, só pode, de fadiga intensa de tentar se comunicar devidamente e não conseguir.
E foi de repente, de supetão, nada assim paulatinamente, de forma que desse pra se acostumarem com o silêncio dela, e ela se acostumar também. Simplesmente ela acordou muda num dia, não tinha mais nada a dizer, nem a quem dizer, nem por que dizer. Simples assim. Então não falou mais. As palavras tinham-se escoado como um lago da Patagônia, no alto da cordilheira. Hipóteses pro sumiço do lago (não das palavras de Ismália) – sim, sabões científicos, hipóteses existem quando não se sabe ao certo, levantam-nas, então:
  1. As águas fugitivas foram pro oceano, vazaram do lago e correram pro seu destino, coletivamente, por absoluta necessidade ontológica;
  2. As águas escoaram-se para dentro da cordilheira, por uma rachadura feita por um micro-terremoto na região;
  3. ET´s abduziram as águas do lago, necessitando de água doce da Terra e não desejando competir com os T´s norte-americanos, bem armados, muitíssimo bem armados, nos rios e igarapés da Amazônia;
  4. Foi a boiada do Renan Calheiros que passou por lá a pastar e bebeu a água, gado tem uma sede do caralho, por causa do sal ingerido. É muito gado pra um laguinho só.
Não sabemos da hipótese correta, uma há de ser, ou outra. Mas sabemos que as palavras de Ismália e as águas do lago sumiram e o Lula não viu nada, sabia de nada.
Sobraram exatamente quatro palavras monossilábicas pra que se comunicasse com os cachorros, os gatos, os passarinhos e a humanidade e demais primatas: é, ta, não e hãn (que era uma expressão idiomática para as emergências, onde as outras três não coubessem). Por exemplo – vou me comunicar no lugar de Ismália para que vocês vejam como o caso era sério, quase sem salvação, alguma coisa tipo um pecado mortal: se diziam vem jantar, Ismália, ela respondia “ta”; se diziam vamos ao shopping?, era um “não” definitivo (tanto pra shoppings quanto pra parques, cinemas, supermercados, comércio de qualquer tipo, igrejas e outros templos, principalmente); se diziam isso é assim ou assado, era “é”, independendo de ser de anssim ou de anssado. Mas se diziam qualquer coisa que não fosse uma pergunta direta ou uma afirmação que deveria ser respondida com outra afirmação – é -, então usava-se o hãn (sempre num tom de voz baixinho e rascante, de contralto, por favor, que hãn de soprano é histeria pura). Nossa, que música bonita!... hãn... esqueci o paletó, voltei pra buscar... hãn... Qualquer coisa abstrata também, os filosofares eram todos recebidos com um hãn na cacunda, pra aprenderem que Ismália emudecida não estava para brincadeiras, estava centrada, estava pairando sobre as mazelas da humanidade. Como Nietzsche, que, se tivesse emudecido, talvez não tivesse morrido cedo. Hãn.
Enquanto verificava, aliviada, que as duas luas ainda estavam lá, no céu e no mar, e que a do céu não estava rachada, esfacelando-se no espaço sideral, não havia hãns nem és nem tas nem nãos. Não precisava. As coisas eram como eram, uma rosa era uma rosa era uma rosa, e uma lua eram duas luas eram duas luas, sempre duas, em par, como uma meia são duas meias duas meias duas meias e podem ser rasgadas por uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra.
Até aí problema nenhum, não é?, hãn, sem crise. Mas os problemas começaram a balir em uníssono quando Ismália pensou na possibilidade de descer da torre. Podia enjoar. Podia cansar. Podia necessitar. Descer um dia. Da torre. Precisaria falar, para isso. Tinha de buscar as palavras no fundo da cordilheira, ou nos mais profundos oceânicos, ninguém sabe, ninguém viu, quem manda os guardas-florestais ficarem um mês inteiro sem olhar pro lago, por isso Ismália, que nem era omissa nem negligente, cuidava de verificar suas luas toda noite. Isso quando não estava chovendo ou eram luas novas, que aí não tinha jeito, mesmo. Mas como boi engorda sob o olhar do dono, as luas de Ismália estavam sempre lá, não eram nem malucas de sumirem feito lago, elas sabiam sua função e os afetos de Ismália.
Mas isso não solucionava o problema de trazer de volta ao menos meia dúzia de frases, de preferência de efeito, que servem para se comunicar, para educar filhos, para mostrar cultura, para desfazer silêncios constrangedores – e os não constrangedores também. Muitas utilidades têm as frases de efeito, pensou Ismália, vamos escolher algumas e treinar.
Passou a mirar-se na lua do mar, quando cheia e clara, um verdadeiro espelho para treinar seus trejeitos, suas expressões, que ficam melhores, as frases de efeito, quando acompanhadas de efeitos especiais. Já sabia George Lucas, intuitivamente. Ismália sabia intelectualmente, o que dá na mesma, o sabido é sabido de que forma for, em poesia, em prosa, em receita culinária, em rol de agenda.
Treinou, treinou e treinou. Exatamente seis frases, as melhores, as mais sábias, as do tipo “cachorro mordido de cobra tem medo até de lingüiça”, que podia ser usada em ocasiões como “por que você está muda?”, ou “o que está acontecendo, Ismália?”. Não vou falar das outras cinco, que nem precisa, sabões entendem de tudo.
Treinou, treinou e treinou, e num dia em que olhou pro céu, a lua não estava mais lá. Nem a do mar. Caracas, sentiu um frio derradeiro por dentro, que é isso, deustodopoderoso, cadê minhas luas? (Nem estava chovendo nem era fase de lua cheia, não vão os incautos levantando hipóteses fáceis, plausíveis demais). Sob tal pressão interior, sob tal desespero em seu ser mais autêntico (aquele que nem Sartre previu), era hora de Ismália descer da torre com suas seis frases de efeito.
O único porém é que ela resolveu descer pela janela, não pelas escadas do lado de lá.
Foi isso. Ficamos sem Ismália e sem saber o destino das duas luas nem as frases de efeito, o que não é grande prejuízo, que o mundo tem tantas delas, em todas as línguas e lábios. E, se olharem o céu em noite sem chuva nem nuvens demais nem fase de lua nova, verão a lua, também, ta lá, sosseguem. Hãn.