O traço que marca o texto de Clarice Lispector, relativamente aos de outros escritores contemporâneos, é o desassombro, que pode ser entendido como poesia em estado bruto ou como inconvencionalismo total. Pessoalmente, prefiro a primeira hipótese.
Primeiro porque, entre todas as definições conhecidas de poesia, prefiro aquela que não poupa os sentimentos ditos nobres ou delicados, muito mais indicados para uso interno – em relações interpessoais, amorosas ou familiares – do que para a literatura ou a criação artística em geral. Segundo porque sua franqueza crua e direta, capaz de abalar convenções e convicções intocáveis, condiz com a poesia, que é também um inconvencionalismo total.
No caso do conto em questão, a poesia e a personalidade literária da autora ficam tão claras que tornam o texto quase paradigmático do uso das palavras e da visão de mundo em Clarice. O único modo realmente poético de falar dessa mulher que mais parece um macaco é expor o efeito que sua figura e sua mera existência causam nas pessoas ditas civilizadas, e esse efeito pode ser um susto, uma estranheza expressa sob a forma de enternecimento/piedade, ludicidade, fuga ou até repulsa. O fato de a mulher ser uma miniatura perfeita e ainda por cima estar grávida, além de ser surpreendente, abre um espaço para a ternura e ao mesmo tempo incomoda as pessoas, reforçando o sentimento de estranheza e um obscuro temor: quem a vê, pressente alguma ligação com ela, compartilha um pouco de sua natureza curiosa e repulsiva, que denuncia muito abertamente o lado grotesco de cada um, que o narcisismo repudia e se nega a reconhecer.
As reações que o conto descreve ilustram bem o resultado desses sentimentos.
O explorador, habituado às extravagências da natureza, sublima a figurinha que se coça em sua presença “onde uma pessoa não se coça” e desvia os olhos “como se estivesse recebendo o mais alto prêmio de castidade”.
Há a “perversa ternura” da senhora que nunca se deveria deixar que chegasse perto de Pequena Flor, como o explorador nomeou a mulher-miniatura. Porque, como diz Clarice, “Quem sabe a que escuridão de amor pode chegar o carinho.” As palavras, que parecem expressar enternecimento, na prática, podem falar de outra coisa. Como explicar por exemplo os maus tratos e maldades praticadas contra seres tão enternecedores como crianças ou animais indefesos? Como interpretar a facilidade com que sentimentos amorosos se metamorfoseiam em crueldade e violência?
Reduzir a mulherzinha a boneca é outro jeito de tomar o mal-estar nas rédeas, assim como fizeram as meninas do internato, que esconderam o cadáver de uma colega para brincar com ela, exercendo seu instinto maternal mais feroz – e negando a morte. Uma outra velha senhora sentencia que “Deus sabe o que faz”, o que poderia ser traduzido por “podemos ficar tranquilos, a culpa de sua existência não nos cabe e não temos nada com isso”.
Nesse texto, que fala de amor e ódio como águas do mesmo rio, Clarice consegue extrair das palavras todos os matizes, o lado obscuro e o mais glorioso da vida, tantas vezes misturados de tal modo que não chegamos a entendê-los à luz da razão – essa senhora pretensiosa, mas inepta para ir além da mera teoria.
Clarice e Fernando
Estive relendo a correspondência entre Clarice e Fernando Sabino, que convém manter viva porque é uma espanada em regra na mesmice e uma oração eficaz contra o estuporamento que ora nos assola (quem conheceu Stanilaw imagina o que ele seria capaz de escrever nestes tempos rebarbativos).
Extraí o seguinte pensamento (quiçá frágil) dessa leitura beatífica: é preciso não compreender um pouco. É coisa de Clarice, mas também traduz ecos de Fernando. Essa ânsia de tudo entender, que nos torna tão donos de uma verdade de ocasião, pode ser fatal para algumas instâncias humanas, como o momento iminente, o fenômeno que se depara a nossos olhos, o assim chamado real no momento mesmo de sua experimentação. Aqueles que compulsivamente ostentam a envergadura de seu saber sempre pisam as florinhas que crescem ao rés-do-chão e perdem grandes oportunidades de ser simplesmente felizes.
Não resolve nada ser onisciente, afirmação esta que não tem nada a ver com defesa da alienação, do alheiamento em relação à realidade. Trata-se de sempre buscar a justa medida entre um reconhecimento dos próprios limites e o olhar lúcido. É a tradução mental para desarmamento, que funciona também nesse nível. Quem não consegue ser mentalmente desarmado – leia-se aberto, empático, alerta contra preconceitos – não acreditará que a paz é possível, não dispensará uma arma de verdade.
Livres da arrogância de imaginar que tudo sabiam, nossos correspondentes dão testemunho de que o sofrimento e as incertezas não impedem que se encontre um tempo de paz interior para exercitar a reflexão e a sensibilidade capaz de fazer florescer uma amizade fraterna, uma das coisas simples e deliciosas que a vida pode oferecer.