domingo, 30 de janeiro de 2011

SENHORA DO TEMPO


Esta seção é sobre a memória de cada um. É o microcosmo resgatado para compor a colcha de retalhos que é a estória do brasil e do mundo,a nossa história.   Senhora do Tempo e Vila..., que voltará em breve, sintetizam a multiplicidade do Primeira Fonte, que a partir do pessoal toca o universal, seguindo o exemplo de Marcel Proust, de "Em  Busca do Tempo Perdido" e  João Guimarães Rosa, das veredas do grande sertão. Ninguém melhor para  iniciar os contares do que Vera Guimarães .
(ALD e ELB)

RUA DA BAHIA

 Por Vera Guimarães



Rua da Bahia em confluência
com a av. Afonso Pena, no início
do século passado.
Na minha juventude, antes da proliferação de faculdades pelo interior dos estados, se quiséssemos continuar a estudar depois do ensino médio, tínhamos que ir para a Capital, no meu caso, para Belo Horizonte. Nos anos 50 e 60, buscar outra vida significava sair de casa e morar em casa de parentes, pensionatos, formar repúblicas, alugar porões. Experimentei todas as modalidades de moradia, estive em ambientes opressivos, lugares divertidos, convivi com gente maluca, conheci pessoas generosas, daquele tempo ainda guardo amizades verdadeiras.


Edifício Acaiaca
Primeiro fiz cursinho no charmoso Champagnat, especializado na preparação para Direito e humanas em geral, que na época funcionava na Timbiras, entre João Pinheiro e Alagoas. Depois fui fazer Letras, na então UMG, primeiro nos altos do Edifício Acaiaca, depois nos altos da rua Carangola. Um tanto por proximidade e conveniência, outro tanto provavelmente por aquilo a que chamam destino, acabei morando em diversos endereços nas imediações da rua da Bahia, nunca a mais de dois quarteirões de sua rive gauche ou de sua rive droite.

Cine Metrópole - Vista do Centro de
Belo Horizonte
De início, morei com uma tia, na rua Goitacases, entre Espírito Santo e Bahia. Ali seria meu primeiro contato com a metrópole, aliás, o Cine Metrópole ficava a dois passos. A idéia era que eu ficasse provisoriamente nessa casa. Casa, não. Apartamento, um equipamento residencial inédito para mim. Até ali eu não conhecia elevador, porteiro, área de serviço, escada de incêndio. A tia, linda e elegante, amenizou o choque de minha chegada à Capital.

Detalhe do Acaiaca
Morei, depois, ocupando vaga de uma menina que estava de férias, num pensionato de simpáticas freiras holandesas, alegres, trabalhadeiras, bem humoradas. De lá, lembro com especial carinho de um chá com biscoitos que elas serviam à noite, quando a conversa rolava solta, tranquila. Apesar da altíssima densidade demográfica nos quartos, e do evidente desconforto daí resultante, era um ambiente agradável e descontraído. Saí de lá com pesar.



Sobrado de estilo
vagamente art decó
Fui para a casa de um casal sem filhos, outra vaga provisória, num sobradinho de estilo vagamente art déco. Quando a dona da vaga voltou, me instalaram num pequeno cômodo no térreo, perto da cozinha, no que seria um quarto de empregada. Nunca fui tão feliz com uma acomodação como com aquele quartinho. Pela primeira - e única - vez na vida tive um quarto só meu. Não sei por que não insisti para ficar ali. Eu deveria ter insistido. Eu não sabia o que estava perdendo.



Esquina da Av. Bias Fortes com as ruas 
Goitacazes e Rio Grande do Sul. Ao fundo,
na esquina da rua Aimorés com a Av. 
Olegário Maciel, vê-se a fábrica 
Massas Alimentícias Aymoré Ltda. 
Foto de 1930. Crédito: Elias, do blog BH Nostalgia.
De lá fui para o pensionato de uma uruguaia, na esquina de Bahia com Bias Fortes. A casa era um lindo palacete branco, com as varandas em curva. Dos seus toques de requinte, lembro-me do piso de madeira, com desenhos formados pelos tacos claros e escuros, e não me esqueço das janelas do banheiro, onde me encantavam garças e nenúfares no vidro jateado. Mas a dona do pensionato era totalmente maluca. De vez em quando, a propósito de nada, ou de muito pouco, talvez por uma roupa esquecida fora de lugar, um café fora de hora, ela nos reunia e nos passava descomposturas homéricas, gritando conosco num portunhol miserável, provocando em algumas de nós incontroláveis frouxos de riso que só pioravam a situação.



Rua da Bahia, 1955
Morei em outros pensionatos, formamos repúblicas, desfizemos repúblicas. Na caderneta que ficava perto do telefone na nossa casa no interior, minha mãe riscava um endereço e escrevia outro, numa interminável sucessão de rabiscos a testemunhar minha busca pelo lugar ideal, por um lar fora de casa. Até que me casei e saí da órbita da rua da Bahia. Por pouco tempo. Logo voltei. E um dia vim-me embora.

Daqui do planalto central, onde moro desde meados da década 1990, volto os olhos para a rua da Bahia, e a vejo como imenso rio, cujas margens percorri por mais de 35 anos a procura de mim mesma. Não sei se me achei, mas com certeza aquela rua da Bahia não encontro mais.