Por Dade Amorim
Graciliano Ramos. Angústia. 13ed. São Paulo: Martins. s.d.
O protagonista narrador de Angústia vive o inferno do convívio sem compaixão, das arestas cortantes, dos sentimentos servidos crus. Um ambiente da mais completa decadência é o cenário desse personagem amesquinhado pela pobreza, sujo, triste, carregando suas dores sem lenitivo.
Julgando-se indigno e menor – sinais de seu recalque – tenta ser invisível quando fora de casa. Procurando evitar que sua presença seja notada ou estorve alguém, encolhe-se a um canto para passar despercebido no bar. Percebe apenas vagamente os movimentos da criada Vitória, avarenta meio trágica, meio louca, quando esta corre ao quintal para esconder suas moedas; admite como amigos duas figuras inexpressivas, cuja companhia não o afeta, porque estar com eles era como não estar com ninguém – invisíveis, portanto.
Apaixonado por uma vizinha que o troca por outro – o personagem opressor e mendaz de Julião Tavares, cujo pequeno poder o afronta – Luís da Silva sufoca na impossibilidade de enfrentar a existência na cidade com sua pobre bagagem de menino do interior. Vive carregado de dívidas, porque seu salário no emprego humilde não lhe rende o bastante. Sua casa é úmida e decadente, povoada de bichos que são como pragas bíblicas. O drama dessa existência arrasta seus sentidos, afetados pelo que acontece com os vizinhos, de cuja vida ele participa através das paredes finas da casa. Impossível dormir em paz, impossível qualquer paz, partilhando os próprios tormentos com os tormentos alheios.
Figura lamentável de um herdeiro arruinado que se deixa assolar por um surdo desejo de revanche contra esse destino, e debilmente partilha dos ideais revolucionários de seu amigo Moisés. Mas nenhuma perspectiva de mudança é mais forte que o dia-a-dia e as lembranças da infância, origem de suas dificuldades e do sofrimento maior, na fazenda decadente do pai preguiçoso e tirânico.
Sua própria aridez interior, sal grosso sobre a pele queimada, assiste e processa a maledicência, a permissividade, os desejos em carne viva e a ausência de toda alegria que dão as cores de Angústia – um título perfeito. O fluxo de consciência costura a trama de personagens sem grandeza. Suas ações e seus tormentos se agravam, vistos pela amargura inclemente do narrador, até o clímax que o texto sinaliza de diversas maneiras.
A preocupação do narrador com as questões linguísticas chama a atenção no contexto do romance. A futilidade de Marina, que se explicaria pela influência de suas leituras, a retórica patriótica e formal de Julião, o sotaque e as dificuldades léxicas de Moisés, a atenção dada às características de discurso que remetem a traços de caráter. A esse respeito, parece visível a influência de Eça de Queirós, em especial em O primo Basílio. O poder denotativo da linguagem se caracteriza nas descrições das roupas e gestos das pessoas, quando menciona as cores, quando fala das condições físicas de seu ambiente. Nada falta e nada sobra, nesse particular. Por outro lado, a linguagem escrita é também objeto de desconfiança e da depreciação que o protagonista projeta na realidade que o cerca, com frases como “Os anúncios não valem nada, papel aguenta tudo”.
Vista por seus olhos, a gente que povoa as páginas do romance e a vida de Luís da Silva dispensa qualquer respeitabilidade e qualquer esperança. Nisso o romance é uma simbolização impiedosa da finita existência humana. Sem ilusões, como é típico do autor de Vidas secas.