Por Ana Laura Diniz
Maurício Ielo e Ana Laura Diniz: avesso à fotografia, o único registro juntos na redação |
Ele veio quando eu menos supunha. A bem da verdade, quem chegou fui eu, e para uma entrevista de trabalho – quinze minutos de conversa e tudo feito. Em menos de uma hora, ele já perguntava se eu podia começar dois dias depois. Jogo rápido entre o pedido de demissão de um emprego e o começo do outro: entrava naquele momento para a equipe jornalística de Maurício Ielo numa revista de Educação. O ano era 2002.
A equipe, entendam, era mesmo enorme: Ielo e eu. E de peso, pois genialidade à parte, característica que descobriria pouquíssimo tempo depois, àquela época ele era de corpo quase duas vezes a mais que eu, somando uns vinte centímetros a mais na altura, pra contrabalancear. "Um dinossauro, um leão-marinho", eu mexia com ele, que me devolvia qualquer palavrão. Eu adorava.
E foi assim. Entre reuniões de pautas, entrevistas e intensas produções de matérias, rolavam cafés em pequenos intervalos. “Um curto, por favor” – ele pedia e tomava: sem açúcar, encorpadíssimo. Só de olhar a borra do café na xícara, dispensava. Eu, suco de cupuaçu: “Humm, a mocinha é selvagem, é?”. Impressionantemente sarcástico.
Maurício era cheio de tiradas e piadinhas. Eu ria quase sempre. Por outras, fingia ignorá-lo. Mas ele não sossegava enquanto não percebesse um olhar que fosse, daqueles que entregavam a situação – de uma forma ou de outra. Espezinhava e gritava como nos tempos áureos da ECA-USP: "É Branca, é branca, é branca, leone, leone, leone!" - Brancaleone, protagonista do filme de Mario Monicelli, não à toa, era um dos seus personagens preferidos.
Adorável era ouvir os causos de Ielo. Excelente contador, ele repassou a História do Brasil e do mundo inúmeras vezes, em jantares maravilhosos que oferecia, regado a ótimas conversas, bebida e músicas inesquecíveis, algumas revolucionárias. Foi com ele que absorvi a essência da "Canção do Subdesenvolvido" - e ele cantava junto sempre com legítima alegria nos olhos. E "Bella Ciao", com a sua Itália sempre estampada no peito.
Palmeirense roxo, criou apelidos diversos para mim: "viadinha", por eu ser são-paulina convicta; e "criptojornalista", que se derivava também para "criptoartista".
Palmeirense roxo, criou apelidos diversos para mim: "viadinha", por eu ser são-paulina convicta; e "criptojornalista", que se derivava também para "criptoartista".
Os assuntos extra-profissionais versavam pelo futebol, pela política (e salve as memórias d'O Partidão!), pela sua passagem no DOPS de São Paulo onde fora interrogado pela famosa Greve da ECA na época da Ditadura e por aí seguia. Foi com ele que voltei a reconhecer a minha infância com "as músicas proibidas de Juca Chaves", que ouvia em casa; e conheci "Cúmplice", que, para ele, era uma das canções românticas mais bonitas que alguém já criara. "Ana, quem diria que o Juca pudesse ter essa sensibilidade: ouça essa musiquinha!".
Maurício foi quem me disse a verdadeira razão de Pixinguinha ter composto Carinhoso. Mas isso, deixarei para ele mesmo explicar nesse domingo, numa seção especial reservada para ele. Vai o homem, fica a sua história. Foram tantos os bons momentos. E sustos, porque de vez em quando ele passava mal: a pressão ia às alturas. A primeira vez, ele transpirou muito e mesmo com falta de ar, acendeu um cigarro, que - abruptamente - eu joguei pela janela do carro. Ele ficou pasmo. Pensando agora, não lembro de ter visto o Maurício sem reação, excetuando esse dia. Ele sempre tinha resposta para tudo. Adepto às invencionices, brincava - como quando cheguei ao trabalho, e na parede ao lado da minha mesa, o recado: “A mocinha aqui do lado é uma criptojornalista”.
Ana Laura Diniz e o prazer de trabalhar frente-a-frente com Ielo |
DA ETERNIDADE - Para o meu espanto, aquele homem de fala firme e bonita, digno de um tenor, se tornou não apenas um grande chefe, mas um amicíssimo – daqueles que – quero eu acreditar – valerá por muitas outras vidas.
Um dos maiores conhecedores de turfe do Brasil, quiçá do mundo, eu o segui enquanto pude, acompanhando suas transições e mudanças de casa. Quando o conheci, morava na rua Alagoas, em Higienópolis, zona oeste da capital. Depois foi para perto da rua Augusta, São Bernardo do Campo, e chegou em Santa Cecília, último apartamento em que o visitei. Acho que foi exatamente nessa ordem, a memória falha, talvez. Depois eu mudei para Caxambu, no Sul de Minas, e nossos encontros ficaram – infelizmente – nas promessas.
Quanta saudade.
Como jornalista, foi um dos que me deu mais carta branca, e confiou em tudo, sempre, sem titubear, sem esmorecer – e por felicidade, tudo deu certo, sem exceção; até que um dia nos separaram profissionalmente - e ele voltou a escrever sobre turfe. Não demorou muito para eu sair da tal revista e alçar voo para o Grupo Folha.
A partir daí, os encontros permaneceram, mas cada vez mais esporádicos. A vida cobra situações que, ao menos aparentemente, não faz o menor sentido. E as obrigações, as responsabilidades, impedem que o melhor dela às vezes aconteça.
Driblamos enquanto pudemos. Amigos assim não se encontram em cada esquina. E ele morreu. “Aos 56 anos, vitimado por complicações pós-operatórias de uma cirurgia de coração”. E eu apenas soube quase um ano depois: nesse 17 de setembro que se aproxima, data em que tomarei posse na Academia Caxambuense de Letras, marcará um ano sem ele. E foi por conta desse convite não entregue, no desejo de que ele pudesse finalmente vir a Caxambu me ver, juntamente com a sua companheira Betsy, que resolvi digitar o nome dele no google. Há mais de oito meses sem notícias e com tentativas nulas de contato, encontrei a notícia que temia, aquela que falava da sua morte.
E o que é a morte senão um silêncio profundo?
Um mergulho no abismo da gente mesmo.
Um chamado sem resposta.
Uma dor contínua, que não cessa.
Uma dor contínua, que não cessa.
Procuro alucinadamente concretizar o infinito. Choro a saudade da pessoa que foi o Maurício e a pessoa que eu fui com e depois dele.
“Mau”, como também costumava chamá-lo, foi para poucos, ainda que fosse muito. Tudo era intenso nele, hiperbólico, exagerado. Objetivo e ciente do seu papel como jornalista, colecionou amigos e inimigos; mas até estes, vejam só, o respeitavam. Porque ele primava por uma ética e um respeito cada vez mais raros na profissão. Dono de uma sensibilidade ímpar – mas invisível aos olhos da maioria, talvez – era criativo na mesma medida em que afoito para criar projetos, cumprir prazos, ter grana para as contas no início do mês. Chego a pensar que, cigarro à parte, de alguma forma o jornalismo talvez tenha contribuído para a sua morte precoce.
Foi tão fácil amá-lo. Difícil mesmo é esquecê-lo. Mas esquecer para quê?!
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Tantas coisas mais. Qualquer palavra dita fica aquém da realidade... e, por isso mesmo, deixo o pensamento sem rédeas: o porvir tem mais sentido e doçura que qualquer ponto final - por si só recluso, e pior, definitivo.
Ouça a Bella Ciao que é Maurício puro, em uma das possíveis versões!
"Mau, cadê você?!". Não há ponto final nessa história...
Maurício Ielo, o jornalista e o amigo, permanece presente, imortal, com todos aqueles que o admiram e amam.
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Maurício Ielo, o jornalista e o amigo, permanece presente, imortal, com todos aqueles que o admiram e amam.
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Ouça a Bella Ciao que é Maurício puro, em uma das possíveis versões!
Aamulla varhain kivääriin tartuin. Oi, bella ciao, bella ciao, bella ciao, ciao, ciao. Aamulla varhain kivääriin tartuin, sen käänsin kohti sortajaa. Aamulla varhain kivääriin tartuin, sen käänsin kohti sortajaa.
Käy partisaani nyt rinnalleni. Oi bella ciao, bella ciao, bella ciao, ciao, ciao. Käy partisaani nyt rinnalleni ja kohtaloni aavistan. Käy partisaani nyt rinnalleni ja kohtaloni aavistan.
Kun surmaluodin, saan taistelussa. Oi bella ciao, bella ciao, bella ciao, ciao, ciao. Kun surmaluodin, saan taistelussa, toverit minut haudatkaa. Kun surmaluodin, saan taistelussa, toverit minut haudatkaa.
Sen haudan ylle, kauniina jääköön. Oi bella ciao, bella ciao, bella ciao, ciao, ciao. Sen haudan ylle, kauniina jääköön vuoriston kukka kasvamaan. Sen haudan ylle, kauniina jääköön vuoriston kukka kasvamaan.
Niin, että kansa voi vuoritiellä. Oi bella ciao, bella ciao, bella ciao, ciao, ciao. Niin, että kansa voi vuoritiellä sen nähdä hiljaa hehkuvan. Niin, että kansa voi vuoritiellä sen nähdä hiljaa hehkuvan.
Se kaunis kukka, on partisaanin. Oi bella ciao, bella ciao, bella ciao, ciao, ciao. Se kaunis kukka, on partisaanin, vapauden vuoksi taistelleen. Se kaunis kukka, on partisaanin, vapauden vuoksi taistelleen.