Por Vera Guimarães
Não pretendo abordar o drama mundial que é o trabalho infantil, prática que escraviza e condena à morte e à degradação milhões de vidas ainda no começo. Em todas as partes do mundo crianças são submetidas a tarefas pesadas, insalubres, continuadas, em muitos casos acima de suas forças e de sua compreensão.
Os meninos carvoeiros não têm perspectiva de mudança de vida, nem nunca brincarão nem irão à escola. Os ditos falcões, meninos do tráfico, Falcão - Meninos do Tráfico , têm baixa expectativa de vida e declaram mesmo que não querem viver. Nas grandes cidades, meninas pequenas são retiradas da escola para cuidar de irmãos menores enquanto as mães trabalham. Ou vão para a rua vender bala. Ou vão se prostituir.
Quero, sim, contar de um trabalho infantil divertido, prazeroso, integrador, aquele executado por crianças ao lado de seus pais, aquele que complementa o próprio trabalho dos adultos, feito de tarefas que significam simulação de papeis e aprendizado para o futuro.
Assim que minha família se mudou da roça para a cidade, em fins da década de 1930, meu pai começou um negócio de produção de fumo. Eu ainda não era nascida. Na ampla chácara dentro da cidade, meu pai fazia os viveiros e plantava as mudas. Zila é quem conta:
“As flores do fumal eram lindas, cor-de-rosa, e nelas estavam as sementes, miudinhas. Depois vinha a colheita das folhas, que eram postas em balaios e levadas para o barracão, onde eram penduradas até a hora de destalar. Tinha bancos com uma roda enfiada, presa nele; a pessoa assentada ia fiando, fazendo as tiras. Depois juntava três e saia uma trança bonita e firme. Tudo na roda, fiando ou trançando. Depois embalava numa lata, fazendo uma “rodia” (rodilha?) dentro dela, ou enrolava num pau. O rolo de fumo. O fumo de rolo. Aí tinha o fraco, o forte, o amarelo, o preto, o fino, o grosso, a gosto de todos os fregueses. Bem destalados, bem fiados e com aquela ciência de quem sabia fazer bem feito.” (Zila Guimarães Lanza, minha irmã, in PROSA NA VARANDA).
Todos trabalhavam nisso. Uma das irmãs me contou que nosso irmão mais velho levava o rádio (na nossa casa, sempre o rádio!) para o barracão e promovia concursos, algo assim como adivinhar qual seria o próximo cantor, quem sabia cantar a música, qual ritmo viria. Suponho que o prêmio seria diminuir as tarefas do ganhador. Vejam só, antes de inventarem a matéria Gestão de Pessoas meu irmão já praticava estratégias motivacionais!
Perdi o ciclo do fumo, mas depois conquistei minhas pequenas tarefas. Mais nova da casa, sempre acompanhei minha mãe às compras. Aprendi a escolher frutas, legumes e verduras e hoje, mesmo com os recursos de compras on line, gosto de ir pessoalmente ao supermercado ou à frutaria.
Dia desses, compramos canela em pó e eu lembrei que antigamente a gente usava canela em lascas, aquela casca seca e enroladinha. Era uma das minhas tarefas socá-la no almofariz de bronze até virar um pó finíssimo, do qual exalava o aroma delicioso da especiaria. A cor, inconfundível, foi cantada em prosa e verso na nossa literatura e em letras de músicas. Além da mais óbvia de todas, A MULATA É A TAL, de Braguinha, (“Mulata cor de canela, Salve, Salve, Salve ela!”), tem também Milton Nascimento:
http://www.youtube.com/wat ch?v=au3QjsnmB1k&feature=related
A figura do almofariz sempre me trouxe lembranças agradáveis e, assim que encontrei um parecido com o nosso, o trouxe para minha casa, onde divide espaço com a tesoura enferrujada, abridores de latas e de garrafas, a carretilha de abrir massa de pastel, objetos usados na velha cozinha da minha mãe.
Ficar rodeando a cozinha trazia alguns bônus, coisinhas bobas e muito apreciadas por mim e outras crianças. Por exemplo, em dias de festa ou de preparação de uma comida melhor, ajudar a descaroçar azeitonas e ameixas garantia poder chupar os caroços mal trabalhados. Abrir a lata de leite condensado significava poder ficar com a sobra. Ajudar a bater claras em neve para o bolo assegurava poder raspar a tigela onde foi batida a massa, assim, crua mesmo. E ganhar a raspa do doce de leite no fundo do tacho de cobre, aqueles queimadinhos? Era o céu na terra!
Trabalhar não era castigo. Mesmo assim, eu fazia corpo mole para algumas tarefas. Mas no geral entregava marmitas de bom grado. Ia feliz fazer alguma compra, entregar ou buscar alguma encomenda, levar recado para um parente, levar tecido para cobrir botão, chulear uma roupa.
Também gostava de descascar verduras e o fazia seguindo instruções estritas de minha mãe para não tirar casca grossa. O desperdício era inadmissível. E foi assim que fui eleita a descascadora das laranjas da terra que se transformariam em maravilhosa compota, amarela e brilhante.
Aliás, para cozinhar essas frutas ou outro alimento que demandasse tempo e muito gasto de gás, fazíamos fogareiro de serragem, e eu adorava participar de todas as etapas da confecção desse engenhoso artefato. Era assim: primeiro, Mamãe e eu íamos à serraria buscar a serragem, resíduo do corte da madeira, um pó fino. Não sei se era comprada ou ganhada. Em casa já havia uma lata de 20 litros da qual se havia retirado a tampa e se havia feito um buraco ao pé de uma das faces. Nesse buraco se enfiava um toco de lenha, cilíndrico, e pela abertura de cima, de onde tinha saído a tampa da lata, se enfiava outro. Aí eu segurava unidas perpendicularmente essas duas peças de madeira, enquanto Mamãe ia despejando a serragem. Aí é que era bom. Provavelmente por ter os pés ainda pequenos, eu subia e marchava em cima da serragem, que ia ficando gradativamente compactada. Eu saía e se despejava outro tanto de serragem. E assim sucessivamente, até o material chegar à borda da lata. Retirávamos as peças de madeira com cuidado para não desmoronar aquela estrutura e tínhamos um túnel em L. Colocava-se em cima da lata a panela ou o tacho e acendia-se o fogo, que resultava numa bela e duradoura chama que ardia durante horas, a serragem se consumindo lentamente.
Meus irmãos mais velhos com certeza trabalharam mais do que eu. Caçula, mais protegida, pouco fiz para aliviar a imensa carga de trabalho da minha mãe. Trabalho infantil para mim era algo leve e divertido.
Pena que não possa ser assim para todas as crianças!