domingo, 22 de maio de 2011

SENHORA DO TEMPO. DULCINÉA VIRTUAL, QUEM ENCONTRAR FAVOR AVISAR.

Por Sealvia

Atendo diariamente pessoas tão diferentes entre si, que posso até dizer que no meu trabalho o padrão de normalidade é a anormalidade, e já não me assusto com quase nada.

O quase é cortesia de um cliente no mínimo curioso. Ele é a única pessoa adulta que eu conheci que nunca (e nunca é nunca mesmo, não é o nunca de fim de semana) assiste à televisão. Ele não tem tv, aliás, ele também não tem casa, mas não é por isso que ele me deixa chamá-lo morador de rua. Tudo o que possui cabe, e muito bem, dentro de uma mochila velha: pedaços de livros copiados, letras de música, desenhos alucinantes, um terno de linho engomado e a esperança amarrotada de reencontrar o grande amor.


Ele não tem computador e não sabe mexer num, mas diz que aprende se alguém se dispuser a ensinar. Não tem e-mail, mas sabe que a medida de distância entre as pessoas na grande rede é dada pela intenção e não pela localização.


Foi por isso que, entre conversas e cópias da sua arte, ele me pediu pra procurar por Ela, na Internet. Ele não sabe onde Ela está e nem tem certeza se seu nome é verdadeiro, mas se apega a ele como a um tesouro. Pega de uma folha de papel um pedaço e o escreve, como que para trazê-lo ao mundo real, e depois o coloca em minhas mãos acreditando que alguma magia vai acontecer quando for parar na tela.


Seu sorriso se encolhe a cada tentativa frustrada de busca e começo a achar que ele tem razão em duvidar da veracidade do nome. Nem ouso lhe dirigir o olhar enquanto penso que talvez Ela também esteja numa terra além do nosso alcance e faço então uma pequena entrevista com ele, na tentativa de decifrar aquele Dom Quixote, um cavaleiro moderno de (não tão) triste figura em busca de sua Dulcinéia.

Desdobrando novamente o sorriso ele me conta que tiveram um romance proibido, e que talvez a ausência dela e do nome sejam parte de um plano maligno que o persegue: o plano de poderosos para vergá-lo, enquadrá-lo, torná-la inatingível e afastá-los. Mas garante que jamais desistirá da busca e explica que um homem não é nada sem uma mulher pra lhe servir de leme onde só há vento e vela e que é por isso que ele não pôde parar quieto numa cidade, que foi seguindo sua pista que ele veio descendo lá do Pará, passando pela Paraíba, parando um tempinho na Bahia, que morou também no Rio onde quase ficou, amigado de uma passista casada, mas de onde precisou fugir, caindo nos braços do trabalho braçal em Sampa, até chegar em Campinas. Aqui ele fez mais inimigos do que amigos e aprendeu que não pode confiar em homens porque um quer sempre o que o outro tem, seja palpável ou não, e sua maior mágoa foi receber uma oferta modesta de trabalho com a condição de que se tornasse cidadão, um número num papel.


Pergunto se ele não aceitaria expor seu trabalho e ele me olha com desconfiança e diz que só se não tiver que depender de nada nem ninguém. Ele me oferece um dos seus desenhos, que troco pelas cópias que acabo de fazer, despede-se com uma grande mesura e sai.


Alguma coisa me agita as entranhas com essa história e essa presença e não consigo deixá-lo partir, ao menos dos meus pensamentos. Rumino por vários dias a experiência, mas não existe uma conclusão, apenas acho que eu não estava preparada para a sua liberdade, não estava preparada para não cair na tentação de enquadrá-lo e catalogá-lo e colocá-lo junto aos meus outros conceitos e pré-conceitos. Não deixo de pensar que se passasse por aquele homem na rua talvez eu mudasse de calçada, e se o visse atravessando a rua é bem provável que eu fechasse a janela do carro e estando ele num banco de praça talvez eu quase não o notasse em meio à paisagem.


Esse quase é um susto, mas um susto bom, como um chacoalhão que te tira do sono. Acho que estou abrindo os olhos, agora.