sábado, 28 de maio de 2011

84, CHARING CROSS. O MUSEU DO PRADO - PARTE I

Por Ana Paula Medeiros



Ah, o Museu do Prado, na Espanha. Fui numa quinta-feira. Cheguei lá pouco depois da hora que abriu, emocionadinha. Rolava uma exposição paralela, só de Francis Bacon, numa ala separada, mas era um ingresso pago à parte. Juntando isso com o fato de que eu só teria aquele dia para visitar o Prado, achei melhor priorizar a coleção permanente, e o Bacon ficou pra outra vez. Não podia fotografar nem sem flash, e dada a quantidade de câmeras e guardinhas em cada sala, eu imaginei que era melhor não arriscar. De mais a mais, pra quê? A maior parte dos quadros está na internet, nos livros de história da arte, até em postais e catálogos vendidos na lojinha, com uma qualidade muito melhor do que eu conseguiria sem flash, escondido e driblando todos os turistas na minha frente.

Antes de começar o tour, devo contar duas coisas que me chamaram a atenção. Uma foi que em praticamente todas as salas havia uma reprodução, em curso, de uma das obras-primas expostas. Explico: acho que eram estudantes de arte, de pintura, alguma coisa assim, e estavam lá, de cavalete montado, um professor rondando e dando pequenas instruções, e o cara ali, tentando reproduzir um daqueles quadros. Achei muito legal. Ajuda a gente a se dar conta (como se precisasse) da dificuldade que é achar aquele tom de pele, fazer brilhar aquele reflexo num cabelo ou num olho, mostrar aquela sombra na dobra da roupa. E olha que o aluno nem tem que se preocupar com o tema ou a composição, que já estão dadas.

A outra coisa que me encantou foi ver, ao longo de todo o dia, várias excursões de alunos ao museu. E não eram alunos adolescentes, nem sequer crianças, eram praticamente bebês. Turminhas de 3, 4 anos, que não sabiam ler ainda, passeando em filas, mãozinha no ombro do colega da frente, com as professoras mostrando a eles as coisas. E o mais legal, é que não era uma explicação inútil sobre o autor da obra ou a simbologia do quadro, ou sequer sobre os personagens retratados, que não faria nenhum sentido para eles. Era só uma coisa de percepção de cores e formas gerais, e sobre as impressões espontâneas deles, o que era bonito, ou feio ou assustador. Eu achei genial. Você vai impregnando as criancinhas com arte desde cedo, de forma que passe a ser quase natural para elas estar dentro de um museu, apreciar uma obra de arte, se familiarizar com artistas, pinturas, esculturas, com todo aquele ambiente. E eu vou te dizer, as criancinhas pareciam estar gostando daquilo.

Ainda antes de falar dos quadros, uma outra coisa que eu fiquei estatelada de ver foram as mesas com mosaicos de pedra, quase todas com etiquetas que contavam que tinham sido presente de algum nobre a um chefe de estado ou eclesiástico e vice-versa. Os trabalhos mais fantásticos, com flores e animais luxuriantes, retratados em pedras cortadas com perfeição e montadas em tampos que encimavam mesas espetaculares, de madeiras nobres, pés trabalhadíssimos, eu fiquei completamente uau.

Agora vamos nós. Eu peguei um mapinha e tentei ir acompanhando sala a sala, na ordem. As primeiras coisas que vi foram os Tintorettos. A luz explode, as cores são claras e lindas. Do Veronês, eu gostei especialmente de Susana y los viejos. Deus, o que é aquele brocado? Parece cintilar ali, na sua frente, a gente sente a textura do tecido, da pele da Susana.


Depois, acho que vi Goya. As pinturas negras têm caras aterradoras. O sujeito sabia compor um clima nos seus quadros. Saturno, que é uma das mais conhecidas, é terrível, chega a dar um arrepio na gente, ver a representação que ele cria do deus que comia os próprios filhos. Os velhos são descarnados, cadavéricos, de órbitas quase vazias. Eu me encantei com Perro semihundido. É uma tela quase vazia, os tons de fogo e terra, e só um focinho canino aparecendo, muito assustado, mirando o vazio, sem entender coisa alguma. O cãozinho é a própria expressão do abandono diante do Nada, dá vontade de pegar o bichinho e trazer pra casa e garantir que nada, nunca mais, vai ameaçá-lo.



Mais pinturas. As do Renascimento têm cores vivas, brilhosas, a composição é rigorosamente geométrica, dá pra decupar as imagens em figuras como triângulos e losangos. Tudo é bacana, mas os tecidos me deixaram fascinada: brocados, cetins, véus transparentes, veludos, dobras. As cores, texturas, bordados, rendas, brilhos, tudo com absurda nitidez.

E quantos homens imponentes retratados, sisudos, arrogantes, cheios de soberba em suas capas, chapéus, espadas, poses. Deus me perdoe a impertinência, mas eu juro que eu ficava olhando aquelas figuras e imaginando como devia ser amá-los. E me dava um asco imediato. Eu não devo regular bem da cabeça.

Nas composições religiosas, muuuuito frequentes, diga-se, eu achava engraçado perceber que o menino jesus quase sempre apresentava uma proporção errada da cabeça com o corpo. A cabeça parecia menor do que devia ser pra um bebê daquela idade, quase como se ele fosse um mini-adulto. Procede isso? E que enorme quantidade de Sagradas Famílias. Um monte delas de Rafael. Mas eu fiquei com a impressão de que em todas elas, Maria era muito parecida, ainda que os outros personagens variassem (São José cada hora tinha uma cara diferente, ou Santa Ana, ou os bebês Jesus e João Batista, mas as feições de Maria eram sempre as mesmas). Pode ser que ele tenha usado a mesma modelo para o papel?

Por falar em Rafael, o que é aquele Cardeal? O cara salta pra fora da tela! O braço está nitidamente à frente do resto do corpo, parece que vai sair da moldura, é tridimensional aquilo. Tinha um desses alunos tentando fazer uma reprodução do cardeal, e eu via que o menino suava pra tentar dar vida ao rosto do eclesiástico, sem o menor sucesso. Aí a professora se aproximou e chamou a atenção para o detalhe da luz na ponta do nariz. Eu olhei, e não é que é mesmo? Nossa, dava pra escrever um texto inteiro só sobre esse quadro. Eu nem vou falar sobre o fato de ele apresentar a mesma composição da Mona Lisa, porque isso eu tinha lido antes, então não foi nenhuma sacação minha. Mas não é que é mesmo?


A Anunciação, de Fra Angelico. Eu AMO aqueles dourados meio bizantinos (é folhação a ouro mesmo!), a perspectiva ainda incipiente. Aliás, todas essas pinturas do século XIV, trípticos, retábulos, tudo monumental e dourado, eu acho lindo. Ainda apresentam os arcos orientais, bizantinos, e não os arcos plenos que voltarão hegemônicos com o Renascimento. Há uma espiritualidade, um misticismo nessas pinturas que eu acho que se retrai muito com toda a racionalidade renascentista. Deixei-me ficar um tempão respirando esse momento, até me dar conta que eu ainda tava no primeiro andar e era quase hora do almoço!

A seguir, vieram os flamencos. É outro traço, né? E fiquei reparando, são outros rostos, outras mãos e pés e olhos. Outras cores também. E montes de detalhinhos minúsculos, uma profusão de pequenos objetos e seres e elementos. Essa coisa da cor, eu fiquei pensando. Estamos no século XVI, XVII. Não dá pra ir ali na papelaria da esquina e comprar tubos de tintas de tudo que é cor, e pincéis de cerdas disso e daquilo, numerados por tamanho, e telas padronizadas. Devia haver poucos pigmentos, e dependendo do fornecedor, da escassez da matéria-prima, de um monte de fatores que eu nem sei enumerar, cada pintor devia conseguir fazer um azul, um vermelho diferente. Daí que, em regiões distintas, as cores predominantes nas telas também serão distintas. E vai da maestria do artista saber se virar com aqueles tons e tirar dele todas as nuances de cor e luminosidade.

O Triunfo da Morte, de Brueghel, é de cortar a respiração, doer as juntas dos dedos, e arrepiar os cabelinhos. Se a gente fica olhando muito praquilo, reparando nos detalhes de horror, perde até a fome, porque o sorriso já terá sido apagado há muito tempo. A Rowling deve ter posto uma imagem desse quadro na frente quando bolou os dementadores.




Já o Jardim das Delícias, de El Bosco, é como se fosse o reverso da mesma medalha. Mas você já escreveu muito melhor sobre esse quadro, lá na apostila de história da arte, do que eu poderia sonhar em fazer.

Nesse ponto, na minha caderneta, há uma anotação que eu já não sei se diz respeito a outros quadros do El Bosco, ou a outros quadros em geral que eu tava vendo nessa hora. Acho mais provável a segunda opção. A anotação diz que a Virgem está quase sempre de olhos baixos, recatados, raramente ela olha para a pessoa que está ali, vendo a imagem, isso me causou uma impressão.


... Vencida a primeira parte, semana que vem mostrarei o segundo andar do museu... seguimos juntos, sim? Até lá!