segunda-feira, 3 de outubro de 2011

O feitiço do Ubaldo





João Ubaldo Ribeiro. O feitiço da ilha do Pavão. 2ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011.


A palavra furdunço, de origem norte-nordestina, seria perfeita para categorizar esse livro, não fosse a prodigalidade de acontecimentos e personagens – extremamente bem delineados, diga-se – que povoam o texto. Aqui, tudo pode ser ou não ser. Aqui a ficção está pontuada e enriquecida, com certeza, por pequenas ou grandes características possivelmente de origem real, disfarçadas e distorcidas por um ambiente fantástico, que o autor se esmera em pintar logo no início da história. São muralhas de rocha, responsáveis por naufrágios numerosos, lagoas negras devoradoras de gente, precipícios, areias ásperas, corredeiras, marés destemperadas e outros acidentes de uma natureza hostil.

No entanto, há toda uma população vivendo nesta ilha quase inatingível.  
Gente de cores e condições variadas, negros alforriados, índios rebelados contra a interdição que os mantém fora da cidade, um rei de araque, o herói que se mantém distante do povo, o apaixonado em desespero, cuja amada, aprendiz de bruxa, impede a consumação do amor. A par dessas pessoas simples, do povo, por assim dizer, as autoridades da ilha criam situações escabrosas sob o mais completo segredo, que obviamente será desfeito por alguém cuja curiosidade vai além de todos os impedimentos naturais ou inventados.

O que atrai mais nesses agitos insulares é a capacidade da imaginação dos personagens, suas preocupações inusitadas, as maquinações que os movem e a audácia de certas figuras, quase super-heróis à primeira vista, que no entanto se revelam intrinsecamente figuras humanas perdidas num mundo imaginário, quase – ou efetivamente – fantástico.

Tudo isso é explicitado e debatido, discutido e dialogado, pensado e repensado na linguagem baiana, única e extremamente rica de Ubaldo. Um palavrório tão rico que às vezes oferece termos desusados, convidando o leitor a uma visita ao dicionário.
São 268 páginas de aventuras e conceituações capazes de cansar, às vezes, não só o leitor como, até certo ponto, os recursos narrativos. Além da ironia em que Ubaldo é um dos mestres em nossa literatura, tudo cabe nesse romance sui-generis: hipocrisia, politicagem, heroísmo, pornografia, naturismo, curiosidades que tipificam a vida na ilha do Pavão e, talvez mais que tudo, uma vitalidade incessante que mantém essa brava gente em constante atividade. Ubaldo dá largas à imaginação e nos presenteia com situações desconcertantes e uma forma de realidade às vezes avassaladora.

Apesar de certo exagero ubaldiano, vale a pena conhecer O feitiço da ilha do Pavão como uma amostra nada desprezível do pensamento do autor, que se vale dos excessos fantásticos de sua história para dizer o que pensa da realidade humana. Bem típico de João Ubaldo.