João Ubaldo Ribeiro. O feitiço da ilha do Pavão. 2ed. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2011.
A palavra furdunço, de origem norte-nordestina, seria
perfeita para categorizar esse livro, não fosse a prodigalidade de
acontecimentos e personagens – extremamente bem delineados, diga-se – que povoam
o texto. Aqui, tudo pode ser ou não ser. Aqui a ficção está pontuada e
enriquecida, com certeza, por pequenas ou grandes características possivelmente
de origem real, disfarçadas e distorcidas por um ambiente fantástico, que o
autor se esmera em pintar logo no início da história. São muralhas de rocha,
responsáveis por naufrágios numerosos, lagoas negras devoradoras de gente,
precipícios, areias ásperas, corredeiras, marés destemperadas e outros acidentes
de uma natureza hostil.
No entanto, há toda uma população vivendo nesta ilha quase inatingível.
Gente de cores e condições variadas, negros alforriados,
índios rebelados contra a interdição que os mantém fora da cidade, um rei de
araque, o herói que se mantém distante do povo, o apaixonado em desespero, cuja
amada, aprendiz de bruxa, impede a consumação do amor. A par dessas pessoas
simples, do povo, por assim dizer, as autoridades da ilha criam situações
escabrosas sob o mais completo segredo, que obviamente será desfeito por alguém
cuja curiosidade vai além de todos os impedimentos naturais ou inventados.
O que atrai mais nesses agitos insulares é a capacidade da
imaginação dos personagens, suas preocupações inusitadas, as maquinações que os
movem e a audácia de certas figuras, quase super-heróis à primeira vista, que
no entanto se revelam intrinsecamente figuras humanas perdidas num mundo
imaginário, quase – ou efetivamente – fantástico.
Tudo isso é explicitado e debatido, discutido e dialogado,
pensado e repensado na linguagem baiana, única e extremamente rica de Ubaldo. Um
palavrório tão rico que às vezes oferece termos desusados, convidando o leitor
a uma visita ao dicionário.
São 268 páginas de aventuras e conceituações capazes de
cansar, às vezes, não só o leitor como, até certo ponto, os recursos
narrativos. Além da ironia em que Ubaldo é um dos mestres em nossa literatura,
tudo cabe nesse romance sui-generis:
hipocrisia, politicagem, heroísmo, pornografia, naturismo, curiosidades que
tipificam a vida na ilha do Pavão e, talvez mais que tudo, uma vitalidade
incessante que mantém essa brava gente em constante atividade. Ubaldo dá largas
à imaginação e nos presenteia com situações desconcertantes e uma forma de
realidade às vezes avassaladora.
Apesar de certo exagero ubaldiano, vale a pena conhecer O feitiço da ilha do Pavão como uma
amostra nada desprezível do pensamento do autor, que se vale dos excessos
fantásticos de sua história para dizer o que pensa da realidade humana. Bem
típico de João Ubaldo.