domingo, 30 de outubro de 2011

SENHORA DO TEMPO - OS DOCES LÁ DE CASA

Vera Guimarães

Telinha, a titular da coluna QUITANDA DA VIDA, aqui no PF, atiçou minha memória gustativa específica para doces, com esta receita. Ter doces em casa, principalmente compotas de frutas, era algo tão natural quanto haver água, cama, rádio, quintal, irmãos, primos. Quer dizer, eu nasci e cresci vendo compoteiras cheias de frutas na sua calda brilhante, sedosa e... doce. Aliás, uma dessas compoteiras está comigo e enfeita um armário.

Na minha infância, nos deliciávamos com uma infinidade de doces feitos em casa, às vezes com frutas do próprio quintal.

Só de mamão, havia inúmeras modalidades, cada qual exigindo sabedoria específica quanto à hora de colher a fruta, se a devíamos descascar ou apenas raspar, deixar descansar ou não, enfim, delicadas decisões de que o leigo (ou a criança) não se dava conta.

O mamão era geralmente colhido bem verde e era delicadamente raspado, apenas o suficiente para tirar aquela “nuvenzinha” sem ferir a casca. Usavam-se como lixa, além da faca, folhas ásperas de uma planta do cerrado. No mamão se faziam incisões nem muito profundas nem muito rasas, pelas quais se escoava o leite da fruta, o que garantia um produto isento de amargor.

Para o doce de mamão ralado, usava-se o lado fino ou o lado médio do ralo, conforme o que se desejava obter. Além do doce em pedaços, bem verdinho, esmeraldino, minha mãe fazia um outro, com mamões bem pequenininhos, apenas partidos ao meio ou deixados inteiros. Já o doce dito espelho se fazia com mamões “de vez”, descascados e cortados em lascas, de que resultava um doce mais amarelado, ambarino. 

Curioso mesmo era o processo de feitura do doce chamado de “anel”. Partia-se ao meio um mamão “de vez” e retiravam-se de cada metade as tiras no sentido do comprido, as quais eram espalhadas por cima de um pano de prato numa peneira e ali eram deixadas de um dia para o outro, de preferência no sereno, para amolecerem. No dia seguinte, enrolava-se cada tira com cuidado para não se quebrar e passava-se por ela uma agulha com linha. E assim sucessivamente, formando uma comprida fiada de delicados rolinhos, que eram postos na calda. Ao fim, retirava-se a linha e estavam prontos os lindos anéis na sua calda, perfumados com paus de canela e dentes de cravo, ao gosto do freguês.

Parece inesgotável a versatilidade do mamoeiro como fornecedor de matéria-prima de doces. Quando um pé começava a fenecer, chamava-se alguém para cortá-lo e extrair aquela porção do caule que ficava mais próxima da terra, aquela parte mais gordinha. Lavada, retirava-se dela o miolo, que era ralado e com ele se preparava uma verdadeira “cocada”, num surpreendente branco arroxeado.

Outras frutas de quintal se prestavam a compotas. As laranjas da terra, descascadas bem rente, resultavam, após preparação, num amarelo vivo, brilhante, deleite para olhos, olfato e paladar. De limões verdes se faziam pequenas cumbucas que abrigavam o puxento doce de leite com o qual se fundiam em acre e doce mistura, na medida certa.

Mais tarde, minha mãe aprendeu novas técnicas de cristalizar frutas e descobrimos a beleza e o sabor de doces inimagináveis, como o tomate e o abacaxi cristalizados, passados na água de cal virgem, para lhes garantir impermeabilização por fora e gostosura molhada por dentro.

Uma de minhas irmãs durante algum tempo se encarregou de preparar o abacaxi, bem trabalhoso. Hoje, a guardiã do saber da transformação das frutas em doces é a Maria Francisca, que trabalhou com nossa família ainda na década de 1940, e hoje, ativa e disposta, fornece esses tesouros a uma clientela cativa.
Lendo Pedro Nava, até me envergonho do que escrevi, tal a precisão da linguagem que ele emprega para descrever o que tão pobremente tentei:.

“A cozinha mineira, pouco abundante nos pratos de sal, que ficam nas variações em torno do porco, do toucinho, da couve, do feijão, do fubá e da farinha – é de uma riqueza extraordinária em matéria de sobrepastos. Hoje tudo mudou e minguou... Mas lembro-me bem da mesa de minha avó materna, em Juiz de Fora, onde a Inhá Luísa, da cabeceira, podia olhar a ponta dos meninos e das compoteiras, de que havia, ao jantar, umas quatro ou cinco repletas de doce. Menos, era penúria. E que doces... Os de coco e de todas as variedades, como a cocada preta e a cocada branca, a cocada ralada ou em fita, a açucarada no tacho, a seca ao sol. Baba-de-moça, quindim, pudim de coco. Compota de goiaba branca ou vermelha, como orelhas em calda. De pêssego maduro ou verde cujo caroço era como um espadarte no céu da boca. De abacaxi, cor de ouro; de figo, cor de musgo; de banana, cor de granada; de laranja, de cidra, de jaca, de ameixa, de marmelo, de manga, de cajá-mirim, jenipapo, toranja. De carambola, derramando estrelas nos pratos. De mamão maduro, de mamão verde – cortado em tiras ou passado na raspa. Tudo isto podia apresentar-se cristalizado – seco por fora, macio por dentro e tendo um núcleo de açúcar quase líquido.” (BAÚ DE OSSOS, 1972)

A bênção, Pedro Nava!

Hoje, ligeiramente diabética (?), já não posso abastecer a compoteira com essas delícias. Mas a simples lembrança delas, das pessoas que as faziam, do ambiente em que foram confeccionadas e do tempo em que tudo isso aconteceu enche de alegria todos os meus sentidos.