Carrego tanta lembrança da infância que fica difícil falar de uma coisa ou outra. Mas eis que estou em São Paulo, e vendo a casa da minha irmã cheia de caixas de mudança - pois meus pais retornaram para cá - pensei nas tranças, nas tramas, nos caminhos, nas aventuras, nas viagens, enfim, nas situações inusitadas. E foram muitas.
A mais comum era inventar que algum tio tinha chegado de surpresa em São Paulo (eles moravam, em maioria, em Belo Horizonte), o que fazia meu pai chegar mais cedo do trabalho... ah, que delícia! Podíamos curti-lo um pouco mais, pois sempre trabalhou demais.
Meus pais - Neyde e Mário Lúcio -, criaram uma casa de Anas e Luíses: Ana Beatriz, Luís Henrique, Luís Fernando, Ana Cristina e eu, Ana Laura. Nasci sendo uma estatística - um caso em um milhão - pois minha mãe ficou grávida quase quatro anos depois de já ter ligado as trompas.
E nós cinco aprontávamos! Costumávamos fazer surpresas sempre que possível. Hoje, lembrando das situações, penso que a cada vez que dizíamos ter uma surpresa, eles deviam temer... Mas não sei, pois nunca, jamais esboçaram nenhum desgosto. Como num domingo de sol em que resolvemos lavar o carro do papai - um passat novo em folha, de um verde metálico muito bonito... terminamos e fomos chamá-lo:
- Pai, pai, venha ver, fizemos uma surpresa para você!
Todos junto, querendo levá-lo pela mão, até que ele chegou, viu e disse sorrindo:
- Ah, que legal... vocês lavaram o carro do papai?!?
- Sim, pai, lavamos!!!
- Agora diz uma coisa para o papai: vocês passaram bombril nele?
- Sim, pai, passamos, passamos!!!
- Ah, que legal, ficou muuuuito bonito!!!
E todos entramos felizes da vida.
Dispensável dizer que só tivemos consciência do que tínhamos feito muitos anos depois, uma vez que ele não brigou com a gente. O carro só tinha uma semana e o arranhamos por inteiro... E ganhamos o melhor sorriso do mundo como recompensa.
E mamãe seguia a mesma política: não se estressava por nada. Uma vez, a casa recém-pintada, chamamos os dois para a sala dizendo ter uma surpresa! Eles chegaram, olharam e disseram:
- Desculpem, filhos, mas não estamos vendo nada...
Nós rimos. Três de um lado e dois do outro lado - abrimos a cortina:
- Tcharammmm...
- Nossa filhos, que legal, vocês desenharam a parede inteira??!
- Sim, vocês gostaram??
- Muito, filhos, está lindo!!!
E havia o que quisesse: carros, montanhas, sol, lua, mar, estrela, crianças brincando, andando de bicicleta... o que mais pudesse.
As histórias são muitas, quase que infindáveis... coisas que nem imaginam...
Então olho para essas caixas de mudança e penso no número de vezes que já mudamos de casa, de bairro, de cidade... e mais ainda: que é possível viver num mundo de harmonia, sem qualquer nível de violência para se obter realmente o respeito. No lugar de palmada, diálogo sempre (muito) aberto. E pensando bem, essa característica sobreviveu e nos acompanha até hoje.