segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Atualidade de Isaías




Lima Barreto.  Recordações do escrivão Isaías Caminha. São Paulo, Ática, 1984. 143 p.

O que parece desconcertante nesse romance do século XIX é sua atualidade quanto às leis sub-reptícias e subliminares, que aparentemente correm por baixo do piso social e político do país desde 1500 e que, sabe-se lá por quê, ainda dão o tom nos meios representativos da sociedade.
Mudou – e muito – a linguagem; mudaram os costumes e os hábitos cotidianos; as convenções e a etiqueta se simplificaram um tanto; a tecnologia caminhou mais que o espírito e a civilização começa enfim a assumir seus traços miscigenados. Antes tarde.
Mas quando Lima Barreto descreve uma sessão da Câmara dos Deputados, logo a reconhecemos: “O deputado sentou-se; a desordem aumentou. (...) ao longo da mesa presidencial, na frente, atrás, dos lados, havia um vaivém continuado. (...) Fez-se silêncio, depois de uma infernal contradança no recinto. (...) Dentro em breve, o zunzum recomeçou. Não havia o ruído do começo, mas a desatenção era geral.”
Ainda são assim as sessões nas casas do Legislativo ou em toda assembléia onde deva haver deliberação, votação, escolhas que exijam atenção e cuidado, porque têm caráter abrangente, vão mexer com a vida de milhares ou milhões de pessoas.
Paralelas a esse comportamento meio incivil, meio irresponsável, frases como “Olhe que ainda há homens honestos nesta terra e em altas posições – o que é ainda mais raro”. Aparecem ainda outros conhecidos nossos de cada dia, como racismo, exclusão social, corporativismo (que naquele tempo politicamente incorreto tinham outros nomes ou nem sequer os tinham), tráfico de influências, informalidade em todos os níveis – principalmente nos mais elevados. Prova de que os maus exemplos vêm mesmo de cima e de longe.
O valor de documento sobre o cotidiano, os tipos e a descrição da cidade e seus points que compõem o percurso de Isaías – mulato de origem humilde, que pretendia realizar alguma coisa “de grande, de forte”, suas vicissitudes e frustrações – fazem de Recordações um livro importante para iluminar a história da vida pública e privada no Rio de Janeiro e por extensão no Brasil – daquele tempo e de agora.