segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Grande João: lequelêias

João Guimarães Rosa. Grande serão: veredas. 19. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. 624 p.

A história de Rosa tem como cenários o sertão de Minas, o sul da Bahia e Goiás.
O foco narrativo está em primeira pessoa. Riobaldo, rico fazendeiro, revive suas lutas, medos, amores e dúvidas em um relato caótico. A narrativa  é longa, repleta de digressões  e sugere o próprio sertão, espaço complexo onde acontece a  história.
O tempo da narrativa pode ser de compreensão difícil, toda marcada pela oralidade. Riobaldo reafirma o que diz utilizando sua própria linguagem. A estrutura do romance não se divide em capítulos, e a narrativa em primeira pessoa permite que o narrador alterne os tempos durante suas falas. A obra apresenta o diálogo entre Riobaldo e um interlocutor, o qual não se manifesta diretamente. Portanto, só é possível identificá-lo e caracterizá-lo por meio dos próprios comentários do fazendeiro.
Pode-se dividir o texto segundo alguns fatos mais marcantes, para facilitar a leitura. Na primeria parte, são introduzidos os principais temas do romance: o povo, o sertão, o regime de vida dos jagunços, Deus e o Diabo e Diadorim. Nesse primeiro momento, Riobaldo introduz também a figura do interlocutor. A segunda parte se inicia no meio da narrativa. Durante a segunda das duas guerras narradas, Riobaldo e Diadorim tentam vingar a morte de Joca Ramiro.
A narrativa retorna então à juventude do fazendeiro, quando ele conheceu o menino Reinaldo e, para desespero de Riobaldo, que não sabe nadar, os dois atravessam o São Francisco numa pequena embarcação. Segue-se a isso um conflito entre Riobaldo e Zé Bebelo, no qual esse último perde a chefia, e Riobaldo-Tatarana é rebatizado como Urutu Branco.
No epílogo, Riobaldo retoma o fio da narração do início, contando ao interlocutor seu casamento com Otacília e como herdou as fazendas do padrinho. Ele termina sua narrativa com a palavra “travessia”, seguida pelo símbolo do infinito.

A primeira guerra é protagonizada por líderes do sertão e soldados do governo. Preso, um deles é julgado pelo tribunal dos líderes, dos quais Joca Ramiro é o chefe supremo. Alguns são favoráveis à pena capital, mas acabam dando liberdade ao réu, sob a condição de que ele vá para Goiás e não volte de lá sem licença. Assim termina a primeira guerra.
A paz se estabelece no sertão, até que depois de longo período aparece o jagunço Gavião-Cujo, que anuncia a morte de Joca Ramiro. Começa a segunda guerra, organizada sob novas lideranças: de um lado os assassinos de Joca Ramiro e traidores do bando; de outro, Zé Bebelo, o réu da primeira guerra, que retorna para vingar a morte de seu salvador, chefiando o bando de Riobaldo e Diadorim, com os demais chefes. A segunda guerra marca o fim do romance, na batalha final no Paredão.

Homem danado, esse João. Há algum tempo tinha começado a ler – tardiamente, já sei, grave falha na cultura – Grande sertão. Pois tive que parar ali pelo primeiro terço, porque não dá pra ler esse relato se o leitor não consegue concentrar toda sua atenção no texto. Não dá, porque o que importa acima de tudo não é apenas o enredo, por mais entrecortado em seu tempo, cheio de histórias, casos e lucubrações. O que importa acima de tudo no texto de Rosa é o texto em si – linguagem, sintaxe carecendo atenção, mistura de fala do interior com espertíssimas construções e poesia maior, neologismos desenfreados – e se não der pra curtir com o devido gosto, melhor adiar o projeto.
Recomecei do começo, em outro ritmo. Mesmo que só desse para ler duas páginas por dia, não parei mais. Porque essa é uma leitura de puro prazer, e cheguei a um momento da vida em que não posso me dar ao luxo de rejeitar um prazer. Como diria Barthes, trata-se de um texto de gozo, no que isso implica de mais difícil e mais forte, e igualmente irrecusável.
Quer palavra mais alegre que lequelêias? Pois ler João é isso: enigmas e lequelêias.