segunda-feira, 16 de maio de 2011

HUMANISMO BRASILEIRO DO SEGUNDO MILÊNIO

Por Dade Amorim

Luiz Eduardo Soares, MV Bill & Celso Athayde. Cabeça de porco. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005. 295 p.

Os autores de Cabeça de porco têm em comum algo que faz do livro um depoimento por assim dizer “ao vivo”. Mais do que o mero registro dos fatos a que assistiram e das entrevistas realizadas pelos autores em diversas regiões e cidades do país, o texto fala de uma zona de fronteiras incertas, marcadas por um rastilho de pólvora em certos pontos, quase apagadas em outros, em outros ainda fundamente cavadas no solo, de tal maneira que para ser atravessadas exigiriam uma sólida ponte cuja construção ainda está longe de se completar – se é que estará pronta algum dia.

O alento desse texto, sua motivação fundamental, é uma referência, quase uma variante do pensamento humanista que há séculos se manifesta na história de nossas sociedades, tantas vezes sistematizado em doutrinas filosóficas, mais recentemente em forma de pensamento político, econômico, antropológico ou simplesmente sociocultural. O humanismo aqui no Brasil fácil, fácil descamba para os lados da demagogia, fica paternalista, assistencialista, perde a consistência e a respeitabilidade e se desmancha em emendas que às vezes pioram o soneto.
Não é esse tipo de humanismo que alimenta o livro dos três. Há nele uma dose de empatia que se explica pela história de cada um, pelas origens de quem viveu os problemas da extrema pobreza e os revisita tentando entender melhor os mecanismos pelos quais, nos casos examinados, eles deram no que deram. É uma pesquisa, sim, mas uma pesquisa sem a frieza da isenção olímpica que reduz o sofrimento e suas seqüelas a números. Eles, os autores, sabem muito bem a que os números por si sós podem levar – à racionalização estéril, à punição sem outro resultado que piorar a qualidade humana do punido. Nenhum deles cogita de tais soluções para nossos maiores problemas: a miséria e o tráfico de drogas que nela viceja, em muitos casos como uma seqüência quase natural, a saída mais à mão. E quando “parece que o destino é maior do que a razão”, é preciso mesmo muita coragem e valor moral para ainda acreditar que é possível ser solidário e disponível a ponto de mostrar outro caminho a quem se condicionou ao imediatismo estúpido da violência.

Ao mesmo tempo em que realizam sua pesquisa de campo, os três colocam em exame suas próprias biografias, reações e impressões, e chegam à proposta que aparece logo num dos primeiros capítulos e é exposta por Athayde com simplicidade, em linguagem direta e sem rodeios ou intenções ocultas: querem que o Brasil saiba “... que, por trás de uma arma, tem um coração batendo; que é preciso uma grande intervenção política no país para que não estejamos fadados à escravidão de seres humanos; e que essa intervenção não seja policial, mas em todas as áreas. ... Não é possível a sociedade se escandalizar com as rebeliões dos menores e não ficarmos escandalizados com o fato de serem zero as chances de suas famílias serem parte de uma sociedade civilizada.”

Quando fala da “escravidão de seres humanos”, Athayde alude naturalmente às sucessivas gerações de jovens sem perspectiva que o tráfico absorve, porque é a única saída imediata para fugir à penúria – saída precária, nós sabemos, e mais grave: eles também sabem, mas dificilmente vêem outra. Caso o menino chegue à adolescência, provavelmente sua vida e breve “carreira” se reduzirão à fugaz ostentação de tênis de marca, correntes de ouro, símbolos de sucesso, poder e riqueza que o marketing impinge, mas a realidade impediria.

Não se trata de ter pena desses meninos de futuro breve e tempestuoso. Não se trata de sentimentalismo ou qualquer forma de leniência. Na tentativa de pôr em prática uma atitude capaz de efetivamente inovar, sugerir algum caminho menos arrasador, os autores tentam nos sensibilizar para sua proposta, enquanto refletem sobre “a loucura que é a vida daquelas pessoas e o quanto somos ingênuos, o quanto somos bandidos, o quanto somos irresponsáveis e o quanto somos medrosos.” Mas também o quanto podemos ser criativos, corajosos e generosos a ponto de conseguir vislumbrar nessas crianças o que elas são: parte dessa maioria que “tem necessidade imediata de comer, não de estudar”. E que, se forem despedidas de seus pontos-de-venda, não terão quem as empregue ou ponha na escola. Como explica o motorista a serviço do tráfico: “a maioria desses que, segundo a imprensa, são traficantes, lava o dinheiro do tráfico em padarias e açougues, comprando um quilo de carne e meia dúzia de pães”. Aí começa uma outra discussão, e Cabeça de porco não se furta a ela.