segunda-feira, 2 de maio de 2011

UM PRIMOR DE AMARGURA

Por Adelaide Amorim

Georges Simenon. O gato. 4 ed. Trad. Raul de Sá Barbosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981. 156 p.

Para quem conhece o Simenon dos romances policiais, O gato é um presente e tanto.

O inspetor Maigret, criado em 1930, está bem situado no ranking dos detetives mais queridos pelos leitores do gênero, e suas histórias têm o atrativo do bom vinho – nunca perdem o sabor – apesar de quase sempre terem sido criadas e escritas em no máximo duas semanas, muitas delas por encomenda. Sem a violência de algumas obras desse tipo, o autor talvez possa ser alinhado junto com Agatha Christie no quesito inteligência, mas ganha longe dela quanto à sensibilidade e à qualidade literária: foi qualificado por André Gide como o maior romancista da França atual, e comparado a Balzac por alguns críticos. Seus livros estão traduzido para mais de cem idiomas.

Portanto não é muito de admirar que ele fosse capaz de um livro como esse – que não é o único no gênero do romance psicológico. Acima de um livro sensível, consegue expressar em seu texto um ressentimento antológico, numa história dolorosa, capaz de fazer refletir o mais entusiástico ideólogo do casamento tradicional. Entende-se que esse belga, de quem se diz ter transado com 10 mil mulheres e cuja experiência conjugal teria sido um fracasso completo, fizesse tal idéia da vida em comum. Mas a abordagem do tema e a linguagem que põe a seu serviço; a perfeição do estilo; o modo como consegue situar o leitor dentro do universo doentio, de tortura mental, em que vivem Emil Bouin e sua mulher, Marguerite, não é façanha para qualquer um.

O gato
 serviu de roteiro, em 1970, para o filme do mesmo nome e densidade à altura, com Simone Signoret e Jean Gabin nos papéis principais. Andei procurando por ele nos “museus” de locadoras e sebos, mas não achei. Se alguém descobrir, favor avisar, obrigada.

****

CRÔNICA – BANDEIRA SABOROSO

Eduardo Coelho (org.). Manuel Bandeira.Eduardo Coelho (org.). Manuel Bandeira. São Paulo: Global, 2003. 226 p. (Coleção Melhores Crônicas.)

Falar em Manuel Bandeira lembra logo poema, sextilhas, redondilhas, forma perfeita, verso livre, estrelas, morte, amor, sexo, amizade, pneumotórax. Quando se lêem as crônicas desse volume, entendem-se algumas coisas que ficam obscurecidas pelo encantamento dos poemas. O poema é uma manifestação, a tradução em palavras de uma epifania. Um poema é a iluminação de um momento.

A prosa, especialmente assim, em forma de crônica, dá a conhecer uma dimensão que pertence à conformação subjetiva de seu autor e a um dia-a-dia diferente daquele que se depreende de um diário, mas fala de preocupações que vão além do trivial e têm muito a ver com o que motiva sua curiosidade, o que foi capaz de impressioná-lo ou suscitou uma emoção, um sentimento ou um desejo de conhecer.
Bandeira revela nessa coletânea o ecletismo de seus interesses e a competência para falar sobre eles.
Grande contador de casos, de linguagem refinada e gostosa de ler, pode também usar expressões bem pouco ortodoxas, ou uma escrita descontraída, de linguagem coloquial. Maneja tudo com distinção e louvor, e ainda com originalidades encantadoras, quando fala sobre cidades (deliciosamente sobre o Rio), episódios da história ou política. Impregna de ternura as narrativas sobre a gente do povo, tipos de rua, as crianças, as mulheres. Fala dos amigos, da doença que o afligiu, e também de arquitetura, estilos, artes, sem nunca perder a lucidez que no entanto não torna sua escrita fria, regida pela razão, mas sustenta sua liberdade e leveza, porque é uma lucidez soprada pelo coração de poeta.