segunda-feira, 18 de julho de 2011

Em busca da crônica perdida

Por Dade Amorim

Proust, Marcel. Em busca do tempo perdido. Porto Alegre: Globo, 1981.












O escritor Marcel Proust, fotografado por Man Ray, em seu leito de morte
(imagem Google)





A crônica estava em moda, por assim dizer. Assim como certos vestidos, penteados e adereços que circulavam pelos salões elegantes, a crônica, menos antiga e não menos necessária, era um must da segunda metade do século XIX. Talvez se pudesse dizer que ela representava para os leitores mais qualificados do período o que as miscelâneas dos rodapés de jornais representavam para os menos dotados – ou menos esnobes. Desde os textos simplificadores, não-canônicos, surgidos nos primeiros jornais ingleses do século XVIII, o gênero se tornara conhecido e apreciado na Europa.
A nossos olhos de hoje, o papel de jornalista devia cair bem naquele romancista de fim de século, de trânsito livre nos salões elegantes da aristocracia decadente do Segundo Império. Ele tinha acesso a todos os segredos, participava dos hábitos correntes, discernia com agudeza o que era do que não era elegante; era arguto, fino, irônico e humano sem deixar de ser também um esnobe, e acima de tudo era um homem culto, entendido de arte e de artistas, convivendo com eles, transpondo-os para sua narrativa com naturalidade. Tinha portanto tudo para tornar-se um autor apreciado em seu tempo, e mais ainda, um imenso talento que o tornaria um autor consagrado muito além de sua época, responsável por uma nova concepção de romance. Tudo isso sem deixar de ser peculiarmente um francês de alta sociedade do final do romantismo, o que fazia dele quase automaticamente um cronista social, um cronista de modas, um comentarista de pequenos acontecimentos cuja importância se prenderia quase exclusivamente à importância e aos hábitos sociais de seus contemporâneos e a suas idiossincrasias.
A crônica mundana absorve parte considerável da Busca, praticamente em todos os volumes. O gênero conserva suas cores vivas, sua volubilidade própria, embora servindo a uma construção mais ampla e mais ambiciosa do que a crônica feita para o consumo imediato, como a que lemos em um jornal. Ela dá um tom diferente à linguagem usualmente mais melancólica do texto, introduz um humor sóbrio e se produz utilizando a mesma matéria-prima do romance, do qual é parte integrante, embora mantendo suas características.
A atividade em sociedade se desenvolveu nessa história de vidas de modo quase tão natural quanto os passeios pelo campo e o convívio em família, não certamente por vontade aleatória do autor, mas porque fazia efetivamente parte de sua realidade, da experiência vital que aciona seu potencial criativo e alimenta seu imaginário. Na verdade, o próprio convívio da família abastada poderia ser facilmente apontado como uma forma de iniciação à vida mundana, levando-se em conta, é claro, sua qualidade de experiência infantil. O pequeno Marcel aprende – ou é instado a aprender, embora sem muito sucesso – muito cedo a conter seus sentimentos. Acima de tudo, no entanto, o que ele efetivamente aprende é a vivenciá-los de acordo com os sinais emitidos por situações e pessoas que lhe são importantes, principalmente sua mãe. É na infância que ele percebe – e possivelmente começa a construir – a extensão dos danos possíveis de uma rejeição ou negativa, as cores carregadas que podem tingir um simples impedimento circunstancial. É também nessa fase que ele experimenta na própria carne o sofrimento desproporcional de suas noites no quarto à espera da visita da mãe, retida por deveres de anfitriã ou decidida a não lhe fazer todas as vontades. É então que ele começa a desenvolver os mecanismos de compensação, o amor à leitura e o gosto da solidão.
É também aí que começa seu aprendizado mundano de convívio, com os próprios convidados de sua família, sobretudo nos encontros com Swann, nos signos de seu valor social, na observação e na admiração por aquele amigo singular de seu pai. É então que aprende a distinguir os nomes carregados de um sentido diferente dos nomes comuns, os nomes daqueles que não devem ser "como os outros", e que no entanto só com o tempo ele compreenderá exatamente em que sentido e de que modo.
Claro que este é um comentário despretensioso, tentando analisar um aspecto – que nem pode ser considerado o principal – da obra de Proust. Há muito mais a dizer a respeito e é bem possível que voltemos a falar dele e de sua Busca

Marcel Proust(foto Google)