sexta-feira, 1 de julho de 2011

SENHORA DO TEMPO: BRINCANDO NA RUA, NA CHUVA, NA FAZENDA...

Vera Guimarães

Nas décadas 1940 e 1950, nosso playground eram a rua, as ladeiras, os becos, os muros, os terrenos baldios, as praças, as estradinhas de terra, as lagoas, os quintais, as casas abandonadas, as torres das igrejas, as fazendas dos tios.

Brincávamos na rua. Fazíamos roda, passávamos anel, cantávamos ciranda. Eu queria me divertir, mas era ansiosa e me confundia com as instruções, então nem sempre aquilo era a curtição que era para ser. Acho que até hoje isso acontece comigo.


De todas as cantigas, esta aqui me apavorava:

“Eu sou pobre, pobre, pobre,/De marré, marré, marré. Eu sou pobre, pobre, pobre,/De marré deci.

Eu sou rica, rica, rica,/De marré, marré, marré. Eu sou rica, rica, rica,/De marré deci.

Eu queria uma de vossas filhas,/De marré, marré, marré. Eu queria uma de vossas filhas,/De marré deci.

Escolhei a que você queira,/De marré, marré, marré. Escolhei a que você queira,/De marré deci.

Eu queria (nome da pessoa),/De marré, marré, marré, Eu queria (nome da pessoa),/De marré deci.

Que ofício dais a ela?/De marré, marré, marré. Que ofício dais a ela?/De marré deci.

Dou o ofício de (nome do ofício)/De marré, marré, marré. Dou o ofício de (nome do ofício),/De marré deci.

Este ofício me agrada (ou não)/De marré, marré, marré. Este ofício me agrada (ou não)/De marré deci.

Lá se foi a (nome da pessoa),/De marré, marré, marré. Lá se foi a (nome da pessoa),/De marré deci.

Eu de pobre fiquei rica./De marré, marré, marré. Eu de rica fiquei pobre,/De marré deci.

Céus, essa letra mexia com todos os meus medos e fantasmas. Como assim, existe uma mãe que dá uma das filhas? Melhor nem pensar nisso. E ser pobre? Nem de brincadeira. E se eu for escolhida pruma coisa ruim? E se eu não for escolhida pruma coisa boa? Criança sofre!

Para quem como eu, mesmo depois de exorcizados os medos e pavores, ainda queira saber que raios significa de marré deci, tem aqui uma explicação. Si non è vero...

Fazíamos nossas petecas com palha e embira de bananeira e penas do rabo e das asas de galos e galinhas do quintal.


Fabricávamos bola de vôlei com bexiga de boi que conseguíamos no açougue. Estendíamos, à guisa de rede, dois barbantes de lado a lado da rua e disputávamos animadas partidas. Ao passarem eventuais automóveis, recolhíamos a bola, íamos para o passeio e depois continuávamos. Eu me lembro de “caixinhas” para compra de alguma bola melhorzinha.

Enchíamos de retalhos as meias que seriam descartadas depois de muitos cerzidos e, voilá,  tínhamos nossa bola de bete-altas. Em alguns lugares se fala bente-altas, mas na minha infância era bete-altas. Armávamos as casinhas com gravetos e tentávamos derrubar com a bola a cabaninha do adversário enquanto defendíamos a nossa. Chutando para longe a bola que ameaçava nosso forte, marcávamos nossos pontos correndo de uma base a outra enquanto o adversário ia buscar a bola.

Essa bola de meia era usada também para jogarmos queimada. Uma bolada daquelas produzia roxos monumentais em pernas e braços. Hoje se joga com bola de vôlei, muito menos ofensiva. Nunca vi tanta habilidade em aceleração e efeito quanto os conseguidos por Ethel, no pátio da Escola de Comércio. Salve, Ethel!

Costurávamos e enchíamos de areia ou arroz os saquinhos para o cinco-marias. Eu amava esse jogo e me saía bem nele.


 Espetávamos gravetos em chuchuzinhos e manguinhas e obtínhamos uma boiada, e ainda porcos, gatos e cachorros. Com gravetos fazíamos currais e cercas. Aproveitávamos enxurrada para botar barquinhos de papel para navegar. Fazíamos panelinhas de barro e fingíamos fazer comidinhas no quintal.

Pegávamos tanajuras e as espetávamos pela bunda para vê-las zoar o motor das asas. Achávamos natural que se armassem arapucas e se prendessem passarinhos. Aprisionávamos vagalumes em vidros para vê-los a brilhar. Nós éramos cruéis e não sabíamos. Ainda não existia IBAMA.

Eu tinha um lado moleca, de correr, trepar em árvores, subir em muros, andar centenas de metros me equilibrando em trilho de linha férrea. Gostava de jogar pedra na superfície da água e contar quantas vezes ela ricocheteava. Mas respeitava os brinquedos tipicamente masculinos e não entrava no meio dos meninos quando jogavam finca ou bolinhas de gude. Portanto, a linda prancha de Norman Rockwell de uma menina “papando” as bolinhas de dois surpresos meninos lavou minha alma.


Durante as férias nas fazendas dos tios, mesmo sem saber nadar, nos aventurávamos por córregos e lagoas, às vezes usando bóias improvisadas com as onipresentes bexigas ou com pedaços de piteira. Explico: a planta piteira (ou agave, ou sisal) tem uma estrutura (não é caule) resistente, bem porosa e leve, praticamente o avô do isopor, que flutua. Com isso fazíamos bóias. Nesses córregos e lagoas tentávamos pescar. Eu não me lembro de haver pescado um peixe sequer em toda minha vida. Mas alguém pescava. E disso, sim, eu não me esqueço, da delícia que eram aqueles peixinhos abertos, passados na farinha e fritinhos, de se comerem inteirinhos, cabeça, rabo, nadadeiras, inclusive.

Olhando para trás, vejo como éramos habilidosos. (Claro que não tanto quanto nossos antepassados que moravam em cavernas e tinham que produzir o fogo de cada dia e caçar cada refeição e nem tanto quanto os navegadores que se lançavam ao mare nostrum sem GPS). Mesmo assim, fabricar e fazer funcionar nossos próprios brinquedos e executar tantas proezas demandava a aplicação de princípios de física, química, matemática, geometria, métrica, rima, ritmo, astronomia, meteorologia.

Fazer um estilingue, ou bodoque, por exemplo, significa escolher a espécie vegetal certa, tirar a forquilha do tamanho exato, testar o elástico e sentir a tensão e o ponto de ruptura, caso contrário a pedra não vai ou o elástico volta direto no nosso olho.

Agora mesmo observo, entre admirada e divertida, meu amigo Joaquim aproveitando a quadra de tênis, no momento interditada aos jogos, para lançar piões no saibro que imita a terra úmida de algum terreno baldio. A concentração dele ao fazer a fieira, ao puxar o cordão quebrando o pulso na hora certa e lançar longe o lindo pião de madeira torneada, fazendo-o girar até “dormir”, me asseguram: Este é um menino dos anos 40!

E, de novo olhando para trás, não faço idéia de como escapamos, de como tantos de nós sobreviveram às inúmeras possibilidades de acidentes, afogamentos, picadas de cobras, atropelamentos, quedas. Fazíamos todas as estripulias sem supervisão de adultos.

Mas escapamos. E aqui estamos para contar histórias de outros tempos.