terça-feira, 5 de julho de 2011

O cárcere da escolha



Javier Marías. Coração tão branco. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1995. 306 p.

O protagonista desse romance – tradutor e intérprete de organismos internacionais – narra, na primeira pessoa e em linguagem hipnótica, uma história não muito otimista que tem por tema central o casamento. Amálgama de lembranças, acontecimentos, prenúncios, emoções e sentimentos que, sendo subjetivos e peculiares a ele próprio, pertencem na verdade a todos os homens, Coração tão branco se anuncia de modo quase magistral numa tragédia que de alguma forma regula e dá o tom da história.

Mas o que caracteriza acima de tudo essa obra é a agudeza com que são detectadas e identificadas as diferenças, representadas por percepções, ações, decisões e por certos pensamentos que não chegam a se corporificar em palavras pronunciadas pelos personagens, mas pesam como especificidades autônomas no contexto. Talvez não fosse de todo falso dizer que o romance é um mosaico de peças muito pequenas, quase partículas de energia, diferenciadas apenas pelo tom, pela repercussão no andamento de uma trama que ativa no leitor aquele dispositivo que só a boa ficção é capaz de despertar.

Sentimentos e principalmente relacionamentos são minuciosamente descritos sem nunca ameaçar o leitor de cansaço ou tédio. Mais que descritos, são intercalados em um tecido de palavras, silêncios e sombras que retornam sempre em seus quadros expressivos, dando uma coesão de esfera e toques de crueldade à narrativa. Nada escapa ao mergulho, nada conserva sua face convencional.

Há ainda um toque daquele mistério que não visa acima de tudo a produzir suspense, mas iluminar as coisas que vão se desvendando à medida que o texto progride, e que faz o encanto de alguns textos de língua espanhola, principalmente de latino-americanos (fortíssimo em García Márquez, Borges ou em Cortázar e Bioy Casares, cada qual a seu jeito); um mistério que paira mais do que pousa sobre alguns parágrafos e que aqui quase se confunde com a própria dor de viver.