Stella Cavalcanti
Conheci a obra de Zé Limeira, repentista paraibano nascido em 1886, através da música "Se Zé Limeira Sambasse Maracatu", do grupo Mestre Ambrósio.
A letra contava uma história absurda, afirmando que, se Zé Limeira sambasse maracatu, o macaco teria juízo, jumentos tocariam corneta e cem anjos pernetas celebrariam um casamento. Fui pesquisar essa personagem capaz de criar tanta novidade. E foi assim que eu cheguei no livro Zé Limeira, o Poeta do Absurdo, de Orlando Tejo.
Descrição afinada de uma época distante: o começo do século XX nos sertões do Nordeste. Zé Limeira criava seus versos surrealistas e ganhava fama pelas cidades, fazendas e povoados, ganhando desafios com raciocínio rápido e um repertório inigualável.
"Zé Limeira onde canta, todo mundo
Vai olhá bem de perto a sua orige,
Já cantei no sertão, no Céu da Virge
Sou doutô de meisinha, furibundo.
Viva o Reis, o Juiz, Pedro Segundo.
Sou a cobra que o boi nunca lambeu,
Sou tijolo da casa de Pompeu,
Peripércia da filha do Prefeito...
Hoje você me paga o que tem feito
Com poetas mais fracos do que eu!"
Rei dos versos decassílabos, soberano do martelo-alagoano... Zé Limeira não tinha par no Sertão. E era um homem rude e pobre, sem estudo, que encantava doutores, juízes, jornalistas, da mesma maneira que enchia as fazendas que visitava com o povo humilde a ouvir e decorrar seus repentes. Orgulhoso de seu ofício, não poupava elogios à sua arte:
"Zé Limeira quando canta
Estremece o Cariri,
As estrelas trinca os dentes
Leão chupa abacaxi
Com trinta dias depois
Estoura a guerra civi!"
Tudo se mistura, se combina, se rearranja e recria nos versos do poeta. É surrealismo avant-la-lettre:
"Napoleão Bonaparte
Saiu de dentro da grota,
Veio contar anedota
Prá seu Pedro Malasarte.
Dom Pedro teve um enfarte,
Tomou um chá de jumento
Vomitou, botou prá dentro,
Tornou goipar outra vez
Ás, dama, valete e reis,
Diz o novo testamento!"
Certa vez, ao se aproximar da igreja, numa noite sem lua, Zé Limeira foi avistado pelo vigário, que, assustado, perguntou: "Quem vem lá? É de paz?"
"Quem vem lá é Zé Limeira,
Cantor de força vulcânica,
Prodologicadamente
Cantor sem nenhuma pânica
Só não pode apreciá-lo
Pessoa semvergonhânica!"
Em outra ocasião, o escritor Manoel Otaviano anotou estes versos de Zé Limeira:
"Se tu for na minha casa,
tem capim pro seu cavalo.
Se chegar um filósofo
Eu mando fotoigafá-lo
Se chegar um fotóigafo,
Eu mando filosofá-lo"
Meu apreço pelo poeta só não é maior que minha ignorância :)
Não sei fazer artigo nos conformes das universidades, minha bibliografia é um livro só. Para demonstrar o caráter singular das palavras de Zé Limeira, segue um trecho do desafio feito a Antônio Barbosa, na fazenda Paraíso:
Zé Limeira:
"Eu canto no Paraíso,
A dezenove do mês
A castrapole da noite
E do saci pererês,
Vocês vão me desculpando,
Que eu sou poeta francês!"
Antônio Barbosa
"É esta a primeira vez
Que eu canto no Paraíso
Para Severino Ramos
Homem de muito juízo,
Por isso, bonitos versos
Improvisar eu preciso!"
Zé Limeira
"Peço licença ao truliso
Dos olbús das periférias
Dos chuás das pontilíneas
Dos chomotós das matérias
Das grotas dos veluais
Das mimosas deletérias!"
Depois da saudação aos donos da casa, os cantadores recebem um mote* para inspirar sua glosa*.
"Quer saber quanto custa uma saudade?
Tenha amor, queira bem e viva ausente!"
*Glosa é uma forma de poema utilizada pelos poetas do Nordeste do Brasil, principalmente os cantadores, em forma de uma ou mais décimas (estrofe de 10 versos) que respondem a um desafio, expresso em forma de mote.
O mote é, geralmente, um dístico, ou seja, composto por dois versos, normalmente usado no final da glosa. (fonte: Wikipedia)
Antônio Barbosa:
"Saudade é uma palavra tão mimosa
Que só cabe nos cânticos de amor...
Quando a gente se torna um sonhador
Pronuncia saudade em cada glosa,
É tão bela que a lira de Barbosa
Decantá-la tentou inutilmente...
É um espinho que fura a alma da gente
Deixando o coração pela metade...
Quer saber quanto custa uma saudade?
Tenha amor, queira bem e viva ausente!"
Zé Limeira
"No sereno sertão da Palestina
Eu cantava num Dia de Finado
Uma vaca pastava no cercado,
Um macaco comia uma menina,
Um sargento chegava numa usina
Um moleque zarôi vendia pente,
Um cavalo chinês trincava os dente,
Uma zebra corria atrás dum frade...
Quer saber quanto custa uma saudade?
Tenha amor, queira bem e viva ausente!"
Antônio Barbosa
"Eu comparo a saudade com um barquinho
Solitário, perdido no alto mar
Sob os raios de prata do luar
Entre as ondas que fazem seu caminho
Mesmo assim, sem roteiro e tão sozinho
É o poeta que canta, e chora e sente...
Quanto mais a saudade mata a gente
Mais a gente se inspira de verdade...
Quer saber quanto custa uma saudade?
Tenha amor, queira bem e viva ausente!"
Zé Limeira, para deleite dos presentes, encerra o desafio de forma genial
"Zé Limeiera é meu nome do amor santo
Pinga fogo, caboco do Tauá
Papagaio, cantiga de imbuá
Papavento, cristão por todo canto
Casamento, tacaca, salamanto,
Carnaval, muçambê e Tiradente,
Um macaco, um Prefeito e dois Tenente
Quatro bode, um fuzil, mais a metade...
Quer saber quanto custa uma saudade?
Tenha amor, queira bem e viva ausente!"
Depois de uma boa noite de cantoria, Antônio Barbosa se recolhe, derrotado. E Zé Limeira não deixou a festa acabar:
"Tem nada não, pessoal. Enquanto Mestre Barbosa geme e toma meizinha, eu canto no seu lugar. É por isso que eu digo: cantador prá cantar com este negro velho é preciso ter fôlego de sete gato!"
Em 1954, morreu vitimado por um enfarte, após cantar a terrível história da Pavoa Devoradora, causa das desgraças da terra, dos vulcões e do dílúvio. Morreu sabendo que ia morrer, pois quebrou a tradição que o proibia de dizer estes versos antes da meia-noite - mas, pressionado pelo dono da casa onde se apresentava, não pôde negar o pedido. Mesmo ressaltando que cantar a história da pavoa antes da hora era proibido pelo Alcorão, rezou para Padre Cícero e enfrentou seu destino.
Morreu no caminho de volta para casa, fulminado no lombo do cavalo, com sua viola a tiracolo.
"Sou um caboclo moderno, foi-não-foi eu tou pensando..."
É de Zé Limeira o meu verso preferido, um primor de contradição e doçura:
"No dia em que eu me zangar
Mato você de carinho!"
No youtube:
Se Zé Limeira Sambasse Maracatu - Mestre Ambrósio
Uma homenagem do grupo ao cantador
Zé Limeiriando - Zé Ramalho e Beto Brito
Versos de Zé Limeira musicados por Beto Brito
Bibliografia:
Zé Limeira, Poeta do Absurdo
Orlando Tejo
Cia. Pacífica, 1997